As ilusões causadas pela miopia da transformação têm sido constantes, em maior ou menor grau, mas derivam do erro comum de acreditar que os movimentos transformadores teriam a capacidade de tudo e a todos modificar em um ritmo intenso, por serem forças avassaladoras da história. Isso acontece particularmente quando as transformações derivam de alguma mudança tecnológica, estrutural, social e econômica. A história demonstra, porém, que a mudança nem sempre vence, nem sempre perdura de fato, que as assim chamadas “forças reacionárias” podem ser muito poderosas e que, via de regra, existe uma convivência dialética entre o novo e o tradicional e o que, no fim do processo, de fato predomina um amálgama entre o histórico e o novo.

O que os observadores e analistas mais lúcidos sabem é que a técnica e a tecnologia não mudam a história, mas, de fato, alteram os meios pelos quais os homens fazem a história. Tenho batido nessa tese a respeito do digital, demonstrando o excesso de confiança de que as transformações digitais teriam modificado em grande extensão e profundidade as estratégias, táticas, instrumentos e linguagens empregadas para conquistar e manter os consumidores. Na realidade, o digital já mudou muita coisa e ainda vai alterar muitas outras. Mas ele não gerou uma nova era do marketing e comunicação da noite para o dia, tem apresentado muitos equívocos e falhas e, ao final, o que dominará será um mix das práticas centenárias temperadas com diferentes doses de inovação digital. Em muitos casos, como temos visto com a TV aberta ao redor do mundo e, em especial, no Brasil, o que prevalecerá será o tradicional potencializado, justamente, por recursos digitais.

A vitória do Brexit, primeiro, e de Trump, há pouco, ambas contrariando a grande maioria das pesquisas e das previsões e opiniões da mídia e dos analistas, jogaram um balde de água fria no wishfulthinking e na miopia dos que estavam crentes de que já vivíamos em um fantástico mundo novo e que o passado recente estava superado em definitivo. O reflexo do susto na área de marketing e propaganda foi imediato e muitos de seus líderes estão dando tratos à bola para repensar as abordagens e práticas capazes de falar efetivamente o motivar a chamada “maioria silenciosa” que muito acreditavam ter sido extinta pelo inflado e estridente discurso dos chamados nativos digitais.

Um artigo recente do Wall Street Journal (on.wsj.com/2fSpAEd) aborda essa questão e expressa um mea culpa de alguns líderes publicitários de terem embarcado com muita ansiedade no trem transformador do digital, dos milleniunse correlatos – ainda relacionados, na prática, a uma minoria do mercado. Uma das opiniões expressas na matéria é de David Sable, CEO global da Y&R, que defendeu uma atitude mais realista para a própria atividade de observação do mercado consumidor, ao afirmar que “se você quer descobrir como um leão caça, você não vai ao zoológico, vai à selva”. De fato, todos sabemos que temos gasto mais tempo no conforto dos zoos do que na realidade da selva.

Há dois anos, o livro Publicitários são de Marte, consumidores são de Nova Jersey, escrito por Bob Hoffman, já havia apontado as grandes ilusões atuais do marketing e da propaganda: o amor pelas marcas, o digital e a força dos jovens. O livro foi resumido no BIP, da Rede Globo, e pode ser lido em bit.ly/2gRkEzo.

É leitura obrigatória para todos os que não desejam levar as marcas para as quais trabalham à performance de Hillary Clinton e dos defensores da permanência do Reino Unido na União Europeia. Não que ambos não pudessem ter vencido, é claro, até porque Trump e o Brexit ganharam por pouco. Mas precisariam ter visto o mercado e seus adversários com outros olhos, empregado as pesquisas de forma diversa e, principalmente, utilizado diferentes estratégias, táticas e instrumentos.

Rafael Sampaio é consultor em propaganda