Em 2017, o Ministério Público do Trabalho (MPT) passou a se reunir com movimentos sociais e outros órgãos para compreender o cenário da participação da população negra no mercado de trabalho.

Mas foi após o lançamento da novela Segundo Sol, da Rede Globo, em 2018, que a entidade sentiu necessidade de debater com órgãos de mídia sobre a representatividade dessa população em seus quadros funcionais. O folhetim, ambientado na Bahia, estado com a segunda maior população negra do país, trazia um elenco predominantemente branco. “Tentamos compreender que intervenção poderia ter o MP para a realização da sua missão institucional de incluir pessoas negras – ou todos os que possam estar carecendo de privação de direitos -, no mercado de trabalho”, explica a coordenadora nacional de promoção da igualdade e eliminação da discriminação no trabalho do MPT, Valdirene Silva de Assis.

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) referentes ao segundo trimestre de 2019, a taxa de desocupação dos que se autodeclaram pretos é de 14,5%, superando a média do país, que conta ainda com pardos (14,0%) e brancos (9,5%). Para a procuradora, estes números revelam essa população como sendo “alvo de uma exclusão severa, estrutural e sistemática.” “Nos cursos de ensino superior, as áreas de publicidade e comunicação são as que têm a menor inclusão”, aponta Valdirene.

Valdirene de Assis, procuradora responsável pelo Conexão Negra
Foto: Reprodução/TVFutura Play

Por isso, o projeto Conexão Negra busca integrar jovens egressos desses cursos no mercado, agindo junto a três eixos: bancas de direito, grandes empresas e agências de publicidade. A convite do MPT participam dessa iniciativa Africa, Artplan, BETC, DPZ&T, F/Nazca, FCB, JWT, Leo Burnett Tailor Made, Mutato, Ogilvy, Publicis, SunsetDDB, Talent Marcel, Tribal, WMcCann e Y&R.

Pacto
O projeto prevê a assinatura de um pacto com diversas ações que permitem mapeamento, identificação, desenvolvimento e aplicação de estratégias de inclusão dessas pessoas no mercado em três frentes: promoção da igualdade racial, formação e qualificação profissional e contratação.

Por ora, o MPT quer identificar a realidade das agências e fomentar a inclusão. “Não é a proposta desse projeto trabalhar na esteira de enfrentamento. A gente pensa que é possível esse diálogo construtivo […] com o MPT e os seus parceiros (ONU Mulheres, OIT, ONU, Pacto Global, Caritas Brasileira, Sistema S e universidades)”, aponta a procuradora.

Entre os compromissos firmados pelas agências está a realização de censos periódicos com recorte de raça/cor e gênero, divulgação de organogramas com essas informações e funções de gerência e diretoria. Também constam o desenvolvimento de programas de capacitação e educação dos colaboradores e time de recrutamento, campanhas de promoção à igualdade de raça/ cor e gênero, além de contemplar diversidade racial nas campanhas publicitárias da empresa, promoção de debates, fóruns e palestras, entre outros, que tragam o assunto para a pauta.

Para David Laloum, presidente da Y&R, o Conexão Negra traz um sentimento de construção coletiva. “Hoje nossos números não refletem a nossa sociedade, e esse trabalho junto ao MPT vem ao encontro de ações que temos para mudar essa realidade. Em números totais, os negros autodeclarados somam cerca de 16% do total dos nossos colaboradores”, diz. “Algumas áreas estão mais evoluídas que outras nos processos, então esses números variam bastante podendo ir de 5% a 33%.”

David Laloum, da Y&R: “Conexão Negra traz um sentimento de construção coletiva”
Foto: Divulgação

Andre Passamani, co-CEO da Mutato, fala sobre a aproximação do MPT com as agências. “É uma abordagem de tentar corrigir um problema não a partir da coerção, do uso da força, do que o estado oferece ao MPT, mas sim através da criação de uma dinâmica”, diz.

Segundo Eduardo Zanelato, diretor de comunicação e cultura da agência, o primeiro passo do MPT rumo ao pacto foi fazer uma reunião com os RHs. “A primeira era do tipo: ‘falem o que vocês têm a dizer’, na segunda era ‘tragam um censo’ e na terceira ‘o que vocês estão fazendo a partir das duas primeiras conversas’”, resume. “A gente recebeu o convite por e-mail, como todas as agências. Eles deixaram bem claro que era um convite para uma conversa. Desde o começo foi algo muito leve”, explica Andrea Assef, diretora de comunicação da J. Walter Thompson São Paulo.

“Desde o começo, o MPT está sendo absolutamente cuidadoso. Ninguém está sendo ameaçado ou pressionado. Não há nada policialesco. Esse documento que assinamos já foi feito baseado nas conversas que tivemos”, completa. Além de São Paulo, o Conexão estende suas atividades para outros locais por meio de capacitações ofertadas pelas agências para estudantes de publicidade.

Em julho, a Y&R enviou o redator Felipe Silva e o gerente de planejamento Leonardo Ribeiro para Salvador, onde ministraram um curso para cerca de 100 pessoas relativo a temas de suas áreas. “A experiência foi extremamente enriquecedora para os nossos colaboradores. Com certeza iremos repetir na etapa São Paulo”, diz Laloum. O projeto deve seguir ainda para Paraná, Brasília e Rio de Janeiro.

Inclusão já era realidade
Pelo menos em algumas agências, o trabalho para inclusão de negros já era uma realidade. Mesmo antes da aproximação do MPT, Mutato, Y&R e JWT tinham projetos direcionados neste sentido.

“Temos um grupo de colaboradores que se reúnem para pensar em ações referentes à inclusão. No fim de 2018, trouxemos Jeferson Martins que, além de coordenar a comunicação da agência, é um catalisador dessas ações, operacionalizando, firmando parcerias, colocando as ações de educação e sensibilização, entre outras, no centro da nossa cultura”, aponta Laloum.

Na JWT, o projeto 20/20 promove uma série de iniciativas que objetivam chegar até 2020 com 20% de cargos estratégicos ocupados por negros. “Quando o projeto começou, tínhamos 3% de negros nas áreas estratégicas. Hoje temos 14%. São 36 pessoas no total, 24 estagiários, sendo 11 negros e 13 pardos, e 12 efetivos, sendo cinco negros e sete pardos. Muitos desses efetivos são da primeira turma”, explica Andrea, que celebra o fato de o MPT ter citado o programa nas reuniões iniciais com as agências.

A diretora ressalta a importância da participação da Raphaella Martins no projeto. À época, a profissional era a única executiva negra e foi a responsável por trazer como parceira Patricia Santos, CEO da EmpregueAfro e especialista em carreira.

Patricia ajudou a pensar a estrutura do 20/20. Hoje, Raphaella é a única (e primeira) executiva negra da área comercial da Rede Globo.

Andrea Assef (casaco preto), diretora de comunicação da J. Walter Thompson, entre os colaboradores da agência; programa 20/20 foi mencionado como exemplo pelo MPT
Foto: Divulgação

A executiva faz questão de ressaltar como nasceu a iniciativa. “Em agosto de 2016, o Ricardo John era o CCO e me chamou na sala dele e falou: ‘Andrea, vem cá. Tá vendo algum negro aqui?’. Eu falei: ‘Não, nem aqui nem em nenhum lugar da agência’. Ele respondeu: ‘vamos mudar isso?’”, relata.

A Mutato, por sua vez, também era conhecida por sua diversidade racial e por isso foi chamada pelo MPT. Mas os executivos da agência são cientes de que a questão ainda precisa de anos para uma resolução satisfatória. “A gente questiona muito essa narrativa de tratar o problema como resolvido. E estamos com a estrutura aqui, né? Quando você olha para nosso RH, por exemplo, isso fica muito gritante nas reuniões. É a única agência que leva uma coordenadora de RH que é negra”, comenta Zanelato.

Andre Passamani, da Mutato, reconhecida pela diversidade
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Segundo Passamani, para que haja êxito no combate da falta de negros nas agências, é preciso deixar o mito da contratação do “profissional pronto” e passar a enxergar além. “Se você tem um profissional pronto, certeza que ele é um coach quântico. Se ele não é coach quântico, ele não está pronto. […] Obviamente, um cara que é bilingue, um cara com uma formação muito boa, ele vem bem preparado. Pronto? Não é verdade”, comenta.

E se…
Recentemente a FCB anunciou o fim de seu centenário relacionamento global com a Nivea. O motivo teria sido o comentário homofóbico de um executivo da marca durante uma teleconferência de apresentação de campanha, em que o time da FCB teria proposto um casal homossexual nas peças de Nivea Men. “We don’t do gay”, teria dito o representante da marca, desencadeando o encerramento da parceria.

A atitude, tida como corajosa por parte do mercado, pode ser encarada como um marco no relacionamento entre agências e empresas diante da onda de empoderamento de minorias. Para a procuradora, é por isso que o Conexão trabalha também com advogados e empresas, para que espelhem o compromisso. “É preciso que as contratantes saibam o que está acontecendo e estejam envolvidas no projeto”, diz.

Para ela, a sociedade está “reconhecendo o racismo estrutural” e ações afirmativas vão além de cotas. “Não é só contratar, é na verdade permitir inclusão e conscientizar o seu RH e os demais colaboradores que essa equidade é uma necessidade para que tenhamos ambientes de trabalho saudáveis, que reflitam a realidade brasileira”, defende.

Carlos Fernandes, gerente de Insights, e Camilla Oliveira, analista de Insights na Mutato
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Questionado sobre abrir mão de uma conta, assim como a FCB fez, Laloum fala que entende a educação como uma ferramenta poderosa. “Em um primeiro momento, essa seria a nossa reação para ilustrar a esse cliente quais são os nossos valores. Porém entendemos que a saúde do nosso negócio, que é formado por pessoas, é nosso principal ativo, portanto, estamos em um caminho onde cada vez mais tomamos atitudes que deixem claro a tolerância zero que temos ao desrespeito à dignidade humana”, afirma Laloum.

Nesse sentido, o MPT entende a contratação às cegas como uma solução secundária, já que esta não seria uma forma efetiva de garantir a diversidade na equipe, uma vez que os selecionados, mesmo de forma oculta, podem vir a ter o mesmo perfil. “Eu direciono para os negros, mas eu só quero USP. Aí, dependendo da carreira, você não vai achar”, diz Valdirene.

“Uma contratação às cegas desde o começo sem garantir no resultado o acesso desses profissionais acaba selecionando os mesmos perfis que não privilegiam a diversidade. Após uma seleção direcionada, que inclua profissionais negros e garanta o equilíbrio étnico, a contratação às cegas é muito bem-vinda”, aponta Laloum.

Segundo Andrea, para uma contratação às cegas funcionar, é preciso levar em conta alguns pontos cruciais. “Fazer às cegas com o branco que estudou nas escolas de sempre, não é às cegas. Precisa ser de verdade. Aqui, só fazemos para o 20/20 e funcionou superbem”, comenta ressaltando que o viés inconsciente do branco vai influenciar no resultado do processo, se não houver o cuidado necessário.

Y&R abriu suas portas para o Movimento Co.esão, com profissionais de comunicação de diferentes agências e veículos
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Para Andrea, se a questão humanitária e inclusiva não for suficiente para o contratante, deve-se levar em conta os ganhos para o negócio. “Um publicitário não pode criar ou querer vender o produto do seu cliente sem olhar para 54% da população”, diz.

Opinião semelhante à de Passamani. “Se você vende para a população brasileira, você tem um percentual de consumidores que é negro. Se você acha que entende tudo sobre eles, talvez devesse conhecê-los para poder entender e um jeito fácil de conhecer o seu consumidor é ter gente na equipe que é o seu consumidor […] A nossa indústria é feita de gente. No fim do dia, o que nós vendemos é o produto que sai da cabeça e dos braços das pessoas”, conclui.

O Conexão Negra terá duração de dois anos e, até lá, o Ministério Público do Trabalho vai avaliar o que se teve de avanço e a efetividade conquistada com essa estratégia.