Isabela Del Monde, fundadora da Gema Consultoria em Equidade e coordenadora do Me Too Brasil (Divulgação)

O assédio sexual se reinventou no home office. Maquiagem e roupas mais provocativas são as mais recentes cobranças feitas às executivas em reuniões para fechar negócio. A jurista Isabela Del Monde, fundadora da Gema Consultoria em Equidade, lembra ainda que o assédio moral baseado em elementos como raça, gênero e origem é outra queixa constante em ambientes de trabalho tomados pelo racismo recreativo. A tolerância e a risada diante de falas preconceituosas podem ser tão traumáticas e cruéis quanto um grito em empresas que têm o racismo como prática institucional. Mas a coordenadora do Me Too Brasil reconhece que esses temas estão cada vez mais presentes em empresas perspicazes o suficiente para entenderem que diversidade gera lucro, riqueza, inovação e criatividade. Confira a sua entrevista a seguir.

Centralidade
A mensagem que uma empresa passa quando cria uma diretoria de diversidade é a de que ela vai dar centralidade para a questão em toda a sua cadeia de negócios, para que isso não seja um assunto esporádico e não apareça só no mês das mulheres, no mês do orgulho LGBTQIA+ ou no mês da Consciência Negra. Já há companhias contratando apenas empresas que tenham diversidade, mulheres na liderança, exigindo políticas institucionais robustas e verdadeiramente sérias. Isso vai passar a ser um crivo de contratação, e é resultado de uma pressão internacional e da sociedade civil. Muitas multinacionais trazem para o Brasil a cultura vigente em suas matrizes, especialmente nos Estados Unidos e em países da Europa, mostrando sagacidade ética e de negócios.

Verdade
Nenhuma mudança de estrutura cultural na empresa acontecerá se a liderança não estiver envolvida. É importante ainda ter um orçamento para as ações de diversidade, além de contar com especialistas. Muitas vezes se trabalha no aspecto mais intuitivo. Mas são os especialistas que estão habilitados a ajudar na criação de políticas institucionais e de contratação, que vão apoiar o desenvolvimento de ações antiassédio e antirracistas, além de protocolos de investigação, escuta, apuração de relatos e acolhimento às pessoas que passaram por incidentes e má conduta. Além de fazerem um arcabouço institucional, eles apoiam a formação de multiplicadores internos.

Tokenismo
É quando a empresa trata uma pessoa com deficiência, por exemplo, como um objeto para as suas ações publicitárias ou sociais. Mas, no dia a dia do trabalho, não oferece espaço com acessibilidade, a pessoa ouve piadas e não recebe a mesma escuta dos seus superiores. O tokenismo não se explica necessariamente por se ter poucas pessoas de um determinado marcador de identidade. E sim porque a empresa não oferece autonomia, respeito e um ambiente seguro.

Imagem lavada
O social washing é uma prática fraudulenta em que empresas dizem ter diversidade, mas, na verdade, elas têm ações maquiadas e superficiais. Na lei anticorrupção, de 2013, há um regulamento estabelecendo que todas as empresas que fazem negócios com a administração federal precisam ter um programa de integridade, e o elemento fundante é o envolvimento da liderança. Se, eventualmente, a empresa é pega tendo um programa fraudulento, as penas podem aumentar. As empresas precisam ter a consciência de que um programa de equidade sem orçamento próprio, liderança envolvida e uma pessoa específica para fazer a interlocução com toda a empresa é um programa que pode ser compreendido por investidores, clientes e consumidores como uma ação fraudulenta. É importante contar com especialistas para evitar que se coloque as empresas em mais riscos.

Cotas
O que chamamos de cotas ou ações afirmativas visa uma reparação histórica. Cota não é só uma ideia de percentual. Chamamos as vagas exclusivas ou preferenciais de discriminação positiva. Isso é bem relevante para começarmos a trabalhar a naturalização de pessoas que nunca estiveram em espaços de poder. É evidente que o critério de seleção não vai ser exclusivamente a raça, o gênero, a sexualidade. A pessoa precisará se encaixar nos requisitos da área. O que acontecia antes é que as pessoas negras, por exemplo, não eram nem percebidas para essas vagas. Tivemos durante décadas no mercado de trabalho uma segmentação de contratação que privilegiava homens brancos. Custou para se perceber que existe qualidade técnica no trabalho das mulheres, dos negros, LGBTQIA+ e de pessoas com deficiência. O profissional é competente e, além disso, cumpre um papel social que é nossa responsabilidade incorporar porque o compromisso do mercado é garantir a inclusão nos mesmos níveis que a população branca, majoritariamente masculina, sempre teve.

Queixas
O assédio sexual se reinventou no home office. Temos pesquisas mostrando mulheres sendo cobradas a usarem maquiagem e roupas mais provocativas em reuniões para fechar negócio. O toque no corpo e a massagem no pescoço estão entre as principais reclamações considerando o trabalho presencial. Vejo também o assédio moral baseado em elementos como raça, gênero e origem. Observo muita diminuição da capacidade técnica de mulheres negras, que costumam ter a sua razão mais questionada. Há ainda o racismo recreativo. As pessoas acham que assédio moral é só gritar com o funcionário. Assédio moral, muitas vezes, é colocar a pessoa para trabalhar num ambiente em que o racismo é prática institucional, onde as pessoas toleram e riem de falas racistas.

Bullying
A publicidade tem um papel relevante de formação da cultura de um povo, e pode reforçar estereótipos negativos. Vejo muito bullying baseado no corpo. Algo bem específico do setor, que já ouvi muito, é uma lista de notas do corpo das mulheres das agências. Da porta para dentro, essa prática reforça que a mulher é um objeto. Vi isso acontecer na minha escola, quando eu tinha 12 anos, e depois vi acontecer em agência de publicidade. Os homens que fazem essas listas são os mesmos que vão criar as peças publicitárias vistas da porta para fora. É inevitável de se pensar que eles não reproduzirão estereótipos ligados às mulheres.

Testemunho
Há relatos de mulheres negras no mercado de trabalho da publicidade que não se sentem acreditadas, não se sentem levadas a sério, que não são respeitadas nas suas transações de negócios. Já cuidei de casos de mulheres negras que sofreram muito mais tentativas de golpes de seus sócios porque as pessoas pensam “essa aí não vai ter acesso aos mesmos advogados que eu tenho, então, eu posso tentar fazer um esquema que fica melhor para mim”.

Diferenças
Adaptar a realidade para as diversas diferenças significa ter equidade. Uma regra que desconsidera a maternidade não trata as pessoas com equidade porque quando a mulher está no fim da gravidez, e no momento de retomada das atividades, a sua produtividade está mais baixa por uma questão física e emocional. Lembro que as crianças também são responsabilidade social. Está previsto em lei. Empresas que não contemplam diferenças de produtividade não estão assumindo a sua responsabilidade pelo bom desenvolvimento das crianças do Brasil. Equidade é ter também uma política de liberdade religiosa, conciliando feriados e rituais realizados nos dias úteis. Não adianta tratar pessoas diferentes sem reconhecer quais são as diferenças. Políticas de diversidade eficazes partem do entendimento de que cada grupo tem a sua particularidade.

Escuta
As pessoas precisam acreditar em canais confiáveis. Esse é um dos grandes gargalos. O ideal é que a gestão seja feita por um parceiro externo para garantir idoneidade, imparcialidade e isenção. Um bom canal de escuta tem três pilares. O primeiro é centrado na pessoa que reporta. Ela precisa ouvir com respeito, atenção e credibilidade. A principal preocupação é o vazamento. Outro pilar é a fundamentação contra o trauma, que aparece quando a pessoa apresenta inconsistências narrativas consideradas normais. Psicólogos, assistentes sociais, advogadas e especialistas no enfrentamento à violência estão habilitados a fazerem essa boa escuta para que não se reproduza sensos comuns. O terceiro pilar é o da justiça e equidade. Significa assegurar que as regras de conduta e as eventuais sanções sejam conhecidas por todos. As empresas precisam compreender o canal de escuta como uma ferramenta para medir a qualidade de produtos e serviços. O foco não é a punição e sim a reparação de problemas estruturais.

Compromisso
A demissão de uma pessoa que cometeu um incidente de conduta é uma resposta fácil, e não transforma a cultura institucional. A proposta da Gema é combinar compliance e cultura da organização para criar um ambiente mais diverso, seguro e lucrativo com redução de risco e acréscimo de prosperidade. Esses temas estão cada vez mais presentes. A diversidade gera riqueza, permite soluções mais criativas e inovadoras.