Cannes é propício para ideias perigosas, afirmou Sergio Gordilho, da Africa, na sessão com Celso Athayde, da Cufa

Dados do IBGE de 2022 exibem números consistentes para o entendimento pragmático das favelas brasileiras: o consumo dos mais de 17 milhões de moradores dessas comunidades periféricas supera os R$ 202 bilhões por ano. Se fosse comparada a um estado brasileiro, ocuparia o 14º no ranking de receitas.

O macroeconômico, porém, não supera o valor intangível que esses redutos habitados por maioria de pessoas negras têm na cultura brasileira. A voz do morro tem origem certificada em Donga, autor do samba “Pelo Telefone”, matriz que abriu portas para Zé Ketty, Carlinhos Brown, Neguinho do Samba, Jackson do Pandeiro, Ludmilla, Geraldo Pereira, Mano Décio da Viola, Cartola, Emicida, Elza Soares, Luiz Melodia, Gonzaguinha, Martinho da Vila e tantos outros nomes que engrossam o caldo cultural brasileiro, cuja massa produz biscoitos finos como a literatura incrível de Machado de Assis.

E hoje? O Cannes Lions trouxe para seu palco principal, o Debussy, o articulador da Cufa (Central Única das Favelas) e empreendedor social Celso Athayde para um debate com  Sergio Gordilho, CCO da Africa Creative, cuja proposta foi desmitificar as favelas, ainda tratadas como guetos, sob o tema “Let’s Speak Favelês”.

Aprender a linguagem e idiossincrasias significa romper barreiras. “As favelas brasileiras não são carentes, são mercados potentes e precisam entrar no radar das marcas”, ponderou Athayde.

Catequese, não! Gestão, sim! As marcas podem se beneficiar da cultura interna das favelas para serem mais eficazes nos seus projetos. A favela é um laboratório vivo com oportunidades de mercado sólidas. As marcas não entendem de favelas porque não sabem se comunicar com os consumidores que as habitam.

“As marcas precisam aprender a falar o favelês”, orienta Athayde. Ou seja, não é ter na ponta da língua gírias como “Tá moiado, leke”.

Esse idioma é econômico. Falar essa língua quer dizer que saber estratificar os potenciais dessas quebradas também significa abrir portas para o seu desenvolvimento econômico, social e intelectual. Athayde é um guerrilheiro cuja trincheira é não baixar a cabeça diante do preconceito do ambiente hetero e branco.

Há benchmark para essa situação ser revertida com apoio externo. Porque as favelas estão articuladas e o caldeirão cultural é uma prova disso. O morro desce para o asfalto e impregna sua estética por meio de gêneros musicais como o funk carioca, o pagode, o candomblé, a moda, a felicidade.

A maioria das escolas de samba são sediadas nas comunidades do país como a Mangueira, Unidos de Vila Isabel, Portela e o Império Serrano, no Rio de Janeiro, por exemplo.

O potencial econômico dessas academias se reflete na economia fluminense, principalmente no Carnaval, assim como acontece na Bahia com turistas do país e do mundo todo se contagiando com a alegrias, do Olodum e dos afoxés.

No final do debate “Let’s Speak Favelês, Sergio Gordilho resumiu a ópera, não do malandro, mas do ser que está maduro para ser aproveitado e dobrar seus gastos quase que num piscar de olhos.

“Cannes sempre foi um lugar seguro para ideias perigosas… ter a favela em cima de um dos mais emblemáticos palcos, na abertura do festival, não só confirma que a favela venceu mas que daqui não deve sair mais. É a afirmação mais uma vez da sua potência. Favela sempre foi um lugar de empreendedores. Empreendedores não têm medo de altura. Então voam alto. Cabe a nós olharmos pra cima e os seguirmos”.

Sandra Martinelli é CEO da ABA (Associação Brasileira de Anunciantes) e Membro do Executive Committee da WFA (World Federation of Advertisers)