Uma era acabou. A era em que viajávamos para o exterior como se vai à esquina. Eram festivais, simpósios, reuniões, cursos, visitas às sedes. Um diretor de agência tinha compromisso no exterior pelo menos umas cinco vezes por ano. E um costume muito comum era a gente receber a passagem pela executiva e trocar por duas classe turística, para poder levar o cônjuge (ou a cônjuge). E a gente ainda fazia um ar blasé, enfarado mesmo: “vou ter que ir de novo a Nova York, saco!” Hoje as teleconferências permitem fazer reuniões com gente de escritórios espalhados pelo mundo e, nesta época de coronavírus, nem entrar mais nos Estados Unidos podemos. Quem viajou, viajou, quem não viajou, pode ter certeza que a farra acabou. Estamos ancorados em nossas cidades, sem muita perspectiva de volta aos maravilhosos tempos em que o mundo era bem menor e Miami nem era considerada cidade estrangeira.

Não falarei sobre o valor do dólar para não chorar convulsivamente. Eu ainda me lembro do tempo que as duas moedas (real e dólar) valiam quase a mesma coisa, o que fazia muita gente comprar enxoval em Miami “mais barato e de melhor qualidade que no Brasil”. Se você aproveitou e comprou lenços, está na hora de usá-los. Aquele hotelzinho mixureco e o restaurante que servia lagosta estão proibitivos para pessoas honestas como nós. Quem comeu lagosta com manteiga no Queen’s Crab guarde na memória, pois a possibilidade de comer de novo é bem remota. Já que falei em Miami, deixa eu contar uma história do milênio passado. Do tempo que a gente só comprava tênis nos Estados Unidos. Uma vez eu estava trabalhando em Miami e meu chefe no Brasil (Zé Roberto Orsi – um cara ao qual ninguém na Thompson tinha coragem de dizer não) me chamou de volta, para segurar um pepino plantado por um cliente muito importante. O problema era que não havia passagens para o Brasil nas próximas semanas. O Zé Orsi, com a delicadeza que lhe era peculiar, compreendeu meu problema. Só compreendeu, pois sentenciou delicadamente depois que expus a situação. “Foda-se – disse ao telefone. Esteja aqui amanhã. Nem que seja nadando”. Quase de joelhos, implorei nas agências das aéreas que faziam a rota uma passagenzinha. Nada. Já desesperado, apelei para uma amiga que era operadora de turismo em Miami, e ela conseguiu uma passagem para o Rio num voo fretado por uma grande empresa brasileira de excursões, que tinha o nome de uma velhinha. Era a única oportunidade de voar naquela semana. Para minha surpresa, a representante da empresa aérea tentou de todos os modos me fazer desistir da ideia de embarcar naquele voo. “Você vai descobrir o que é o inferno, ela disse. Vai querer matar as crianças e se suicidar em seguida. Vai se trancar no banheiro. Vai chorar de ódio, impotência e desesperança. Não vá. Ouça o que eu digo”. Preocupado com minha volta, achei que dez horas num avião cheio de crianças, ainda que desconfortável, daria para aguentar.

Tenho saco e paciência surpreendentes. Consigo ouvir discurso de político do centrão, acompanhar posse de imortal na Academia, show de axé e palestras de motivação. Não seriam algumas dezenas de crianças que me tirariam do sério. Idiota que sou! Tomei dois Lexotan e uma garrafa de vinho, que me deixaram absolutamente calmo e sonolento. Daria para aguentar uma peça inteira de teatro experimental. E aceitei voar. Cheguei ao Brasil com os nervos em frangalhos, catatônico, com traços evidentes de esgotamento e quase com crise de choro. Foi a pior viagem de minha vida, em companhia de dezenas de representantes dos filhos da alta classe média brasileira, estudantes de escolas caríssimas e com diversas atividades extracurriculares. Era um berreiro só, uma violência de presídio para criminosos de alta periculosidade, palavrões dos mais cabeludos, falta de educação, de modos, de um mínimo de civilidade. Os guias, extenuados, não falavam com as crianças, que por sua vez tratavam os guias como animais inferiores. Houve guerra de travesseiros, de latinhas de refrigerantes, de comida e saquinho de vômito. Dezenas de Mickeys, Pato Do-
nalds e super-heróis dos mais variados tamanhos e de diferentes materiais atulhavam os porta-bagagens, os corredores e numa certa altura voavam pela aeronave. Cogitei seriamente em pular do avião, me homiziar na cabine de comando (naquele tempo dava para entrar – não era um cofre) ou tocar fogo em tudo para morrer torrado, mas encontrando finalmente alguma paz. Eu acho que, pelo menos para este tipo de voo, os Estados Unidos estão certíssimos em fechar seu espaço aéreo.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)