A cena ocorre em Bagé. Meu pai, o Birinha, então com oito anos, desce um morro em uma desabalada carreira em direção à linha férrea. Ele tenta chegar antes dos cachorros dos vizinhos para pegar uma carga de gibis, que todas as quintas-feiras era arremessada pela janela do trem em movimento pelo maquinista. Se chegasse depois dos cachorros, os gibis virariam um monte de papel rasgado e babado.
O Birinha também era craque em reproduzir cenas clássicas do cinema no quintal de casa, com bonecos de barro, osso e lã de ovelha. Neste mesmo quintal, anos depois, eu escutava meu avô Martel, com seu quepe de marinheiro, embaixo de uma parreira de uvas contando histórias, sempre amplificado por doses de rabo de galo.
Hoje, quando tenho de criar um conteúdo para mobile que precisa falar com metade do planeta ou decupar um filme, inventar um espetáculo, criar um personagem, não tem como não se inspirar no Birinha e no Martel. Com eles aprendi o encanto da narrativa, a criar personagens e mundos.
Bom, anotação é o meu maior celeiro de inspirações. Bloquinho de desenho por tudo que é lado. O celular lotado de fotos, frases e também mais desenhos. Por mais absurda que possa ser a criação, muitas vezes vem de uma foto de alguém que passou na esquina da tua casa, um desenho em um poste berlinense, aquela anotação em guardanapo, tudo esperando para ser visitado e nutrir o trabalho.
Aprendi também que coisas pequenas e muito simples podem gerar grandes histórias, basta prestar atenção, ser curioso e anotar tudo. Um exemplo disso foi feito durante uma filmagem de um daqueles projetos bem complicados. Com direito a platô lotado e equipe grande, cliente, agência e com cenas que misturavam efeitos físicos com pós-produção, foi nesse cenário que avistei bem no cantinho do estúdio, quase escondido, um cara da técnica, de boné e totalmente alheio àquele fervor do set. Era literalmente uma figura, ele batucava em uma das três tabelas. O sujeito foi devidamente anotado e rabiscado, e, com um pequeno desenho, logo depois virou o Gilmar, um dos personagens ícone da TV Colosso.
Dentro dessas memórias-criações, tem também a foto feita em um mercado público de uma medalhinha de uma santa negra em cima de uma fera cuspindo fogo. Essa imagem que me fez investigar a adoração e culto aos dragões, e assim descobrir como esse tema é recorrente em várias culturas, sendo também assunto de muitas músicas do heavy metal, por exemplo. Esse estímulo que gerou um musical que tem dragões e rock.
Agora fica a torcida para que sempre todos nós tenhamos inspiração por todos os lados. Em um cenário que a geração de cultura é cada dia uma batalha, onde os processos de orçamento sofrem de uma fadiga de barganha, realizar e pôr de pé ideias é a melhor inspiração.
Para o seu Birinha, aprendi a desenhar.
Para o vô Martel, hoje sei fazer um rabo de galo melhor, vai aí a receita: 50 ml de Cynar; 50 ml de Gin Tanqueray nº 10. Servir bem gelado com um ramo de alecrim.
Luiz Ferré é sócio e diretor de cena da Shinjitsu Filmes