Botequins de minha vida, até quando suas portas estarão fechadas? Quero-os de volta, escancarados como um coração de mãe, à espera dos que contam com sua benevolente acolhida. Um botequim para ser verdadeiro não pode ser meia bomba em sua generosa afetividade. Meia bomba não existe para um boteco de responsa. Controlar a entrada, reprimir a aglomeração, ordenar a ocupação de mesa é para avião, hospital e cadeia. Botequim é quase sinônimo de promiscuidade, aglomeração. Imagine um botequim exigindo ordem num lugar onde Moacir Luz resolve mostrar uma música nova? Não me levem a mal. Não sou contra o cuidado sanitário. Meu tempo de moleque já passou. Tempo que eu achava que era subversivo sendo apenas antissocial. Hoje a molecagem mata. Se uma bola na janela do meu tempo de criança custava uma vidraça quebrada, a subversão de andar no estribo e não pagar o bonde significava uns trocados a menos para a CMTC, andar sem máscara e fazer ajuntamento pode custar a vida do outro. Puta brincadeira arriscada.

Voltemos ao botequim, de onde jamais deveria ter saído. Lá também é preciso tomar cuidado com o contágio. Que os bebuns se matem por excesso de álcool ou de saudades, não por transmitir um bichinho invisível, bonitinho mas ordinário, pior do que a pinga mais mequetrefe. Entre tudo que levarei desta perra vida, não quero levar a dúvida se, por omissão, teimosia ou burrice, matei alguém. Bastam-me as culpas que já carrego, cujo peso conheço. Num botequim, me permita filosofar, ocorreram boa parte das coisas importantes de minha vida. Acho que fora do botequim, só na cama e nas agências de propaganda. Mas foi numa mesa de bar que eu contei extasiado minha primeira experiência no amor, minha primeira grande decepção, confessei as mais verdadeiras alegrias e, sem nenhuma vergonha, lamentei as dores que a vida vai entregando a cada rodada. E, tal como faz um garçom sério, sempre acrescentando um bom choro, pois só os mais mesquinhos se preocupam com a exatidão da dose. Foi no consultório de uma mesa de botequim que lamentei minhas separações e no Capela da Lapa (pela proximidade com a Beneficência Portuguesa) que comemorei, de madrugada, o nascimento dos filhos. Vocês sabem quem foram Gilmar, Getúlio, Dalmo, Zito, Fiotti, Urubatão, Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe? Foram os deuses da bola, que num time vestido todo de branco encantaram o mundo inteiro com o mais vistoso futebol jamais jogado. Há registros em filmes, para os incréus. E foi num botequim na Lapa, onde nasci e me criei, que aprendi a ser santista, apaixonado por um time formado por pobretões como nós, que tinham o poder de parar guerras para que os combatentes pudessem ver a magia de seu jogo. Foi no Petisco da Vila, em Vila Isabel, no Rio, que eu, Carlão e Wellington, numa sexta-feira, fomos almoçar e saímos sábado de manhã depois de exterminar o estoque de moelas, jilós, patinhas de caranguejo e quase toda a cachaça prevista para o consumo do fim de semana. Quer dizer, consumimos nós três e os que passaram pela nossa mesa, em quase 24 horas de trabalhos intensivos.

E foi também num botequim que eu e Gustavo Wenelt tivemos a briga mais estranha que já aconteceu. Ficamos uma boa parte da noite discutindo. Trocávamos ofensas, mudávamos de mesa. E, de longe, continuávamos os insultos. E nos reuniámos outra vez na mesma mesa, até nos separarmos outra vez. Isso durante horas. Contratei muita gente em mesas de botequim, muitos até hoje símbolos de qualidade na propaganda. Alguns empresários, de nome na placa da porta. Pois é. Muitos botequins estão fechados para sempre, vítimas dessa pandemia. Outros estão de alma corroída esperando a redentora vacina devolver os fregueses e o viço de antigamente. Botequins que eram o antídoto do self-service, essa praga que é a única vítima que não lamento entre tantos mortos. Botequins, botequins, seus toldos sujos, seus ventiladores, seus espelhos e seus doutores de branco e gravatinha borboleta estão para sempre em minhas memórias. Saibam que estou bem, guardado em casa, tentando ficar vivo para voltar um dia. Saibam que na parede de ladrilhos da minha alma ainda há um velho cartaz da Brahma e um afresco de Nilton Bravo, o Miquelângelo dos botequins do Rio. Um dia estaremos todos de volta. Mais velhos, é verdade. Mas vivos, que à esta altura, já é muito.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)