É raro, mas algumas vezes temos a consciência de que estamos vivendo um momento único. A cerimônia do casamento, a primeira vez que beijamos a mulher amada, a alegria de ouvir o choro do filho, tudo que ocorreu num acidente de carro. Temos o poder de reviver na memória todos esses acontecimentos. Quando um fato é marcante, como o ataque às Torres de Nova York, as circunstâncias de como ficamos sabendo ficarão registradas na nossa cabeça para sempre. Lembro-me “como se fosse hoje” que estava no jipe do Última Hora, em São Paulo, quando uma Kombi que transportava o pessoal do jornal Notícias Populares passou por nós e alguém gritou: “Mataram o Kennedy!”. Imediatamente ligamos o rádio na Difusora para ouvir um locutor com voz trêmula anunciar que o presidente dos Estados Unidos tinha sido alvejado e estava a caminho do hospital. São acontecimentos que não se apagam e podemos reproduzir em detalhes, numa espécie de vale a pena ver de novo. Lembro-me da Praça da Sé inteira ouvindo a narração do jogo da seleção brasileira contra a Suécia, nos 5 a 2, em 1958. Sei que nunca vou esquecer os fatos da semana que estamos vivendo.
O mundo trancado em casa. Ruas vazias, as pessoas com olhar assustado, a ronda por telefone para saber da família e amigos. Nem nos tempos das grandes guerras o mundo agiu de uma mesma forma. Trancando-se. Os mais delirantes autores de ficção científica não chegaram a imaginar que o bicho homem pudesse correr para a toca e se isolar com a família, vendo pela TV ou ouvindo pelo rádio o que estava ocorrendo em todas as partes do planeta. Milhões de pessoas entocadas, com medo de um inimigo que não se vê, não faz barulho e pode ser letal. Nenhum autor poderia imaginar que a humanidade inteira tivesse o sentimento do medo trazido por um invasor impossível de ser visto sem aparelhos, insidioso a ponto de se desenvolver dentro de cada um e surgir de repente, já dominando o organismo e brincando seu jogo mortal.
O bicho pode estar dentro de pessoas que amamos, que muitas vezes protegemos, ou se homiziar dentro de nós mesmos, nos transformando em arautos da morte. Democrático num sentido irônico da palavra, não escolhe raça, cor ou religião. Didata, ele pode estar oculto na saliva de louros de olhos azuis, de pessoas de pele negra, ou amarelada, parecendo querer nos mostrar que somos feitos da mesma matéria, que a epiderme não significa coisa alguma. Sempre que o mundo enfrentou uma epidemia como essa, alguns aglomerados humanos ficaram imunes, até porque antigamente era possível povos numerosos viverem isolados. Desta vez não há como garantir que o bicho não se apodere de quem quer que seja, more onde morar, tenha esta ou aquela religião, se alimente de qualquer tipo de alimento. E essa desfaçatez democrática encerra uma lição que eu gostaria que não esqueçamos. Somos iguais. O bichinho filho da puta nos mata igual, sem se importar com nosso nome, sobrenome, poupança ou currículo escolar. Diante dele, tal como no tango, “todo és igual, nada es mejor. Lo mismo un burro que un gran profesor”. E a consciência de timing dele é perfeita.
Você se tranca em casa com os seus, foge do contato dos outros, fica pedindo aos céus que não esteja alimentando a fera assassina com as próprias entranhas. Jamais um espirro, uma febrícola, uma dor de cabeça foram tão importantes. O bicho, o Chico Cunha como uma amiga fala, é insidioso, cruel. Pode estar escondido na tosse do vovô, presente no muco que escorre pelo nariz da filhinha, no beijo dos amantes. Ah! Falei de amantes. Um conhecido tinha uma filial. E conseguiu por anos enrolar a mulher, vivendo vida dupla. Como, minha senhora, o que eu acho? Um es-cro-to. Digno de levar chifrada bem dada. Um verme. Mas não estou aqui para julgar. Relato, apenas. Esse merda, para poder sair de casa, criou para si um voluntariado, usando a desculpa que se especializou em enfermaria de campanha quando fez CPOR. E passou a sair toda noite para – segundo ele – prestar serviço público de assistência. Até que, numa manhã, é surpreendido pela mulher apontando uma mancha de batom na camisa. “O que é isso, Marco Aurélio? Que merda é essa?”. E ele “é da minha nova função. Agora sou palhaço numa troupe de assistência hospitalar”. Resultado: ele está agora de nariz vermelho, fazendo número de circo para os filhos. Que puxaram a mau caratice do pai. “E o palhaço o que é?”, pergunta ele. “Viado… viado!”, respondem as doces criaturazinhas que ele ajudou a trazer ao picadeiro da vida.
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)