Nas redes você pode encontrar uma revista virtual chamada Revista do Choro, que sobrevive graças ao esforço de sua editora, Leonor Bianchi. É uma publicação seríssima, editada com muito carinho, que procura divulgar este gênero musical autenticamente brasileiro, o choro, cultuado pelos mais sofisticados músicos de nossa terra.
Falando de forma grosseira, o choro é o nosso jazz, pois exige dos executantes a capacidade de improvisar e uma sensibilidade musical muito acima do conhecimento teórico. Mas, brasileiramente, coloca um ingrediente de malandragem gentil, exigindo dos participantes a capacidade de ir se adaptando às mudanças de andamento e tom ditadas pelos solistas, que vão se alternando ao longo da música.
Há muitos anos, atendendo nosso cliente Companhia Internacional de Seguros, editamos um disco que se chamou Chorada, Chorões, Chorinhos, com a reprodução de antigos registros de encontros entre chorões históricos e novas gravações com alguns gênios na época ainda vivos, além da estreia de instrumentistas da qualidade de Rafael Rabelo, por exemplo.
Tenho até hoje uma fita com músicas gravadas por ele e um bilhete: “ao meu primeiro ‘patrão’, Lula Vieira, com um abraço do Rafael Rabelo”. Passada a fase de autoelogio e demonstração vaidosa, me permita voltar ao fio da história.
A Revista do Choro tem também o Prêmio Marcus Pereira, para incentivar a produção de matérias sobre a Música Popular Brasileira. Um dos orgulhos que tenho na vida é ter convivido com Marcus Pereira durante o lançamento do Portal do Morumbi, em São Paulo, um dos maiores empreendimentos imobiliários da cidade em todos os tempos.
Minha agência, a JMM, fez um acordo com a Marcus Pereira e criamos e produzimos a campanha em conjunto, contando com o talento – da parte da Marcus Pereira – de Aloísio Falcão. Durante nosso convívio criando as peças da enorme campanha (o comercial de TV de lançamento tinha 3 minutos e páginas triplas de jornal, para se ter uma ideia) eu tive a oportunidade de conhecer um profissional da maior qualidade e um ser humano encantador.
Como praxe naquele tempo, trabalhávamos com a mesma intensidade que bebíamos. Cada fornada de materiais de comunicação correspondia a fornadas de pizzas e múltiplas garrafas de whisky. Explica-se o destilado: o vinho ainda não tinha entrado na moda.
Nessa convivência, jogamos toneladas de conversas fora, histórias que a perra vida nos proporcionara e uma delas permanece na minha lembrança até hoje, quase 60 anos depois. Falcão me contou que um dia pegou um táxi de madrugada, para ir pra casa.
Quando explicou o destino, o motorista iniciou uma verdadeira enxurrada de reclamações contra tudo e contra todos, juntando no mesmo saco o povo brasileiro, os governantes, a cidade, os habitantes dela, a legislação, os políticos. A conspiração cósmica contra os taxistas, que modernamente incluiria o Uber e demais aplicativos. Já tinham passados uns bons cinco minutos de choradeira quando o Aloísio perdeu a paciência:
“Olha aqui, meu amigo, você acha que é só você que tem problemas na vida? Só você ganha pouco e trabalha feito um animal? Você acha que a esta hora da noite, louco para ir dormir, cansado pra burro, cheio de coisas na cabeça, ainda tenho de ficar ouvindo suas reclamações? Porra, cara, eu sou mais fodido que você!” Ao que o motorista pergunta: “E o que o senhor faz na vida?”
A resposta foi seca e com raiva: “Sou publicitário!” Para total espanto do Aloísio, o motorista responde: “então o senhor está certo, o senhor realmente é um fodido”. Sem perceber nenhum traço de ironia, mas de infinita solidariedade, Aloísio fica atônito. E o motorista prossegue: “tenho muita pena do senhor e de seus colegas.
Quantas vezes de madrugada, num frio de rachar, eu, no quentinho do carro, vejo vocês trepados nas escadas colando cartazes… muitas vezes já me consolei da minha vida vendo o trabalho de vocês…” Aloísio se afundou no banco, pensando que a vida realmente é injusta. E estranhamente teve dó de si mesmo. Não porque colasse cartazes de madrugada. Não só por isso, se é que me entendem.