Como vai você?: Evaristo Costa foi uma das personalidades que participaram do projeto feito para o Centro de Valorização à Vida (Fotos: Divulgação)

Uma ideia pode surgir em qualquer lugar, contexto e momento. No mercado de agências, é normal que profissionais formem um networking de afinidades, mesmo sem dividir o mesmo CEP e expediente. E é ao reconhecer os mesmos propósitos em pessoas longe da convivência física que um “simples” colega de profissão vira amigo, permitindo parcerias fora da rotina. Sem briefings, esses trabalhos paralelos geralmente nascem por acaso, como ideias pessoais e voluntárias para causas que beneficiem a sociedade com informações, doações e visibilidade.

Uma delas é a Lave o Dito-Cujo, ação que alerta para a saúde do homem, principalmente sobre o câncer de pênis. O projeto funciona como um calendário no Instagram: a cada dia de 2020 um lembrete bem-humorado com ilustrações e apelidos de pênis.

A criação é assinada por quatro profissionais que não trabalham juntos: os amigos Leonardo Telles e Saulo Vinheiro, da BETC/Havas, e Guilherme Serato e Marcelo Marui, da Talent Marcel. A parceria foi natural. Quando a ideia surgiu, eles apenas decidiram fazer acontecer. “O Instituto Lado a Lado pela Vida, ONG responsável pelo Novembro Azul, já fazia campanha sobre a doença. O problema é que esse é um tema muito delicado, vira piada facilmente e o assunto principal acaba se perdendo. Criar um calendário usando os apelidos foi uma forma divertida que encontramos para falar de um assunto sério. Levamos a ideia para a ONG e eles toparam na hora”, lembra Telles.

O grupo se encontra às vezes para almoçar ou decidir os próximos passos, mas no geral a mágica ocorre online, especialmente via WhatsApp. A campanha é colaborativa e artistas interessados podem entrar em contato pelo e-mail laveoditocujo@gmail.com.

Outra ação é o movimento que reuniu 84 profissionais, que não querem ser identificados, trabalhando juntos, mas separados. De diferentes agências e empresas, nos intervalos das atividades, um grupo de autônomos e colaboradores se uniu para criar o movimento #DistânciaSalva. A iniciativa reforça a importância do isolamento para reduzir o contágio da Covid-19. O berço da ideia foi o entendimento de que a tecnologia pode aproximar as pessoas, somado à urgência em contribuir nesse momento global delicado.

Pelo Twitter e Instagram, mais de 50 grandes marcas, como Rappi, 99, OLX, Havaianas, SBT e Masterchef, participam com mensagens, informações e posts criativos que reforçam o conceito sobre a importância do distanciamento social. Celebridades e influenciadores ampliaram o alcance do projeto.

Outro case sobre saúde foi lançado em 10 de setembro de 2019, Dia Mundial da Prevenção do Suicídio. A pergunta Como Vai Você? conduziu a campanha para o Centro de Valorização da Vida (CVV) e atingiu milhões de pessoas durante o Setembro Amarelo. Personalidades como Ana Maria Braga e Evaristo Costa desativaram perfis nas redes sociais para chamar a atenção para o tema.

Eduardo Cabral, hoje diretor de planejamento na Africa, estava na Peppery quando desenvolveu o projeto com o então companheiro de agência Giovanni Pavan, colegas na SunsetDDB e mais profissionais que foram além de suas funções. “A criação teve João Lovise, Felipe Garone e Tomás Rogé. Caroline Cabral fez o PR. Tivemos apoio também de Talita Mendonça, Irys Roque, Camila Salles, Carolina Reis, Stephanie Lima, Simone Santos, Thiago Ito, Alina Paloppi, Luisa Diniz e Silvia Rossetto. Apesar de identificar a especialidade de cada um, foi tão hands on que tinha planejamento contatando influenciador, criativo localizando veículo, produção criando roteiro. Sem estes profissionais não teríamos colocado essa ideia de pé”, lembra.

RESPEITO E REFLEXÃO

Tendo a empatia como base surgiu o Olhe pro seu preconceito, criado por Fabiane Resende (assistente de arte na Leo Burnett Tailor Made), Bárbara Joana (diretora de arte na Wunderman Thompsom), Camila Rodrigues (redatora na Beair) e Ygor Silva (redator na Ogilvy).

OlheProSeuPreconceito: iniciativa nasceu em 2018, após xenofobia nas eleições

Pelo Instagram e Tumblr, o projeto tem cartazes para protestar contra xenofobia a nordestinos e nortistas. A ideia surgiu nas eleições em 2018, quando as regiões Norte e Nordeste sofreram comentários preconceituosos. Na época os quatro faziam um curso de criação publicitária e buscavam uma ideia que ajudasse a sociedade, mas ainda não tão explorada. “A oportunidade surgiu com as pessoas que estavam ali lutando por um objetivo. Veio o tema xenofobia, o qual uma das participantes (Camila, paraense) vivenciou”, lembra Fabiane.

Os cartazes tinham mensagens como A única preguiça que todo baiano tem é do seu preconceito e O lugar que você diz que só tem índio e bicho é o mesmo Caribe Amazônico que você vai passar o Réveillon. Fabiane, que teve sua primeira experiência colaborativa, reforça o lado humanitário da publicidade. “Pensamos em como podemos melhorar o mundo, ajudar as pessoas com os recursos que nos são dados.”

Camila (Beair), Bárbara (Wunderman Thompson), Fabiane (Leo Burnett) e Ygor (Ogilvy)

Já a iniciativa Transxxxviolence foi criada para dar visibilidade à violência contra transexuais. A ideia surgiu quando Ronaldo Lopes e Jeff Delospital estavam na Mullen Lowe, mas só foi realizada quando Lopes mudou para a Leo Burnett. “Decidimos continuar desenvolvendo, pois o projeto não estava atrelado a nenhuma delas, e sim a nós e à nossa vontade de colocá-lo de pé”, recorda o assistente de arte Lopes.

O ponto inicial foi quando eles notaram que o Brasil é o país que mais comete crimes transfóbicos, de acordo a ONG Transgender Europe. Mas, ao mesmo tempo, uma pesquisa revelou que os brasileiros lideravam na busca por pornografia trans no Red- Tube.

Em um canal os dois colocaram 48 vídeos (intervalo de horas que um crime transfóbico é cometido no país). Após segundos de conteúdo pornográfico do próprio site, o vídeo exibe notícias sobre homicídios de transexuais e indica o Disque 100 para denúncias. “Não usamos nenhuma marca ou empresa. Nosso intuito era dar visibilidade para pessoas que precisam ser respeitadas.”

Outro trabalho para gerar reflexão nasceu de um papo informal sobre futebol e as mascotes dos times. Em agosto de 2019, o Santos e a WWF Brasil fizeram uma ação em conjunto no jogo contra o Fortaleza. Após a Baleinha entrar em campo presa a um grande pedaço de plástico, os jogadores entraram com uma faixa alertando sobre a poluição nos oceanos.

Rômulo Caballero: destaque na mídia de forma espontânea

Rômulo Caballero, diretor de arte na F.biz, lembra que durante a conversa entre amigos ficou claro como a imagem seria impactante. “Uma cena forte, com potencial para levantar uma discussão na sociedade, e muito pertinente. Afinal, o Santos pertence a uma cidade litorânea que vivencia esse tipo de problema. Estruturamos a ideia, entramos em contato com o clube e buscamos o apoio do WWF, que tem propriedade para falar sobre o assunto. Ambos foram bem receptivos”, conta ele, que fez o case com Andrés Puig (F.biz), Victor Toyofuku (Mullen Lowe), Alexandre Freire e Maicon Pinheiros (Suno), Wolfgang Covi (NBS) e Nacho Carelli (BETC). “Além de impactar o público presente com o estádio cheio, conseguimos destaque na mídia de forma espontânea em canais, como o Esporte Interativo e a TV Bandeirantes. Nas redes sociais, o Marcelo Tas foi um importante parceiro para dar a dimensão que a ideia precisava”, comemora.

Baleinha entrou em campo enrolada em plásticos para falar de poluição nos oceanos

MOTIVAÇÃO PESSOAL

Boa parte dos cases surge de experiências pessoais e tem significados especiais. Cabral conta que tem na família voluntários do CVV. Ao conhecer a ONG, achou que poderia, junto com outros profissionais, ajudar a sanar desafios como falta de dinheiro, alto turnover de voluntários e pouca visibilidade. “Saúde mental é um dos pilares que mais prezo”, diz.

Gabriel Araújo, hoje na Ogilvy Social Lab, em Bruxelas, participou do projeto Sinfonia da Violência – a música menos agradável de se ouvir, criado a partir de som e marcas de tiros, e outros recursos sonoros que geram reações como ansiedade, tensão e medo aos ouvintes. Além da composição, o case teve exposição e site com cartazes, informações e formas de doar para projetos educacionais e instituições que lutam contra a violência no Brasil.

A ideia surgiu em parte por uma experiência que ele viveu na adolescência, quando perdeu um grande amigo negro para a violência, e também de uma conversa com amigos sobre os números desse problema. “A gente vive numa guerra silenciosa, que vai matando de pouquinho em pouquinho, até o momento que você entende que está mais perto do seu dia a dia do que imaginava. O nosso papel como profissional de comunicação também é chamar a atenção das pessoas a respeito de assuntos difíceis, sensíveis ou de realidades ignoradas pela grande mídia ou pelo governo.”

O trabalho conjunto entre o coletivo Unlockers, a Lucha Libre Áudio e o Drac Studio (Estados Unidos) foi feito via Skype, Zoom e encontros após o trabalho ou nos fins de semana. “Os grandes parceiros foram João Selare, Gustavo Araujo, Fernando Carreira, Dani Celer, Samantha Camargo, Juliana Portela, Paulinho Corcione, Karan Novas e mais um monte de gente que ajudou e agradeço muito por isso. Tivemos até um ex-Guns N’Roses que se encantou com a ideia, o baterista Matt Sorum”, conta.

SUPORTE E ESPAÇO

Ter aberturas das agências para esses trabalhos pessoais e paralelos é uma prática vista com bons olhos pelos profissionais. Para eles, agências que oferecem mais liberdade e contratam pessoas que almejam pensar fora da caixa acabam tendo um ambiente mais rico em possibilidades.

Eduardo Cabral: engajamento é fundamental

Cabral conta que encontrou na Peppery uma brecha para o time que criou #ComoVaiVocê e profissionais da SunsetDDB tiveram incentivo da alta liderança. “Agências têm acreditado mais nestas oportunidades, especialmente porque as pessoas que compõem o negócio buscam mais propósito. Nosso mercado é bem atribulado e achar espaço para engajar em iniciativas pro bono pode ser um desafio. Mas uma vez que este espaço é concedido e é possível equilibrar o dia a dia das entregas com essas oportunidades, é superlouvável”, diz.

Caballero elogia o suporte oferecido pela F.biz desde o começo. Segundo ele o CCO Adriano Alarcon teve ótima relação com todos os envolvidos e foi um dos responsáveis por abrir portas tanto na hora de ceder os criativos, quanto em envolver equipes de produção, RTV, RP e atendimento. “A F.biz funcionou como um hub para essa ideia. Fizemos reuniões com a equipe e os clientes em horários flexíveis para todos. E, sempre que necessário, usamos plataformas, como WhatsApp e Hangout para questões que necessitavam de resposta mais instantânea”, lembra.

Para os profissionais, ter essas chances beneficia a todos e ajuda inclusive no desempenho individual dentro da agência como uma renovação de repertório e até de votos com a profissão. A troca e a experimentação de processos, motivações e soluções agrega um conhecimento recompensador. “Às vezes pode acontecer de ter uma temporada na agência onde não saem coisas que eu realmente me orgulho. Criar por fora é uma maneira de continuar me movimentando e fazendo o que realmente gosto”, conta Telles, da BETC/Havas. “Esses projetos nos ajudam a exercer a criatividade sem alguns limites. Ter ideia autorais sem ter um briefing é muito bom para criar”, acrescenta Fabiane.

O mesmo pensa Araujo. Para ele, o criativo tem de expressar sua criatividade e buscar sempre desenvolver o que acredita, tendo como maior benefício ver a realização e saber que uma ideia não necessariamente precisa ser feita apenas dentro da agência.

O publicitário conta que já conheceu criativos brilhantes que estão frustrados ou reclamando da agência que trabalham, e fala que essa frustração vem muitas vezes da falta de espaço para fazer o que acreditam. “Por isso vale a pena investir em projetos paralelos, fazer com que essa frustração se transforme em combustão para algo incrível acontecer. Você não só pode como deve investir tempo livre no que acredita, fazer algo que preencha seu coração e direcione seus pensamentos para o bem. Trabalhamos num mercado que nos exige tempo, que precisamos ser 100% responsáveis por cada palavra, que não se pode errar. E às vezes todo esse estresse pode ir embora se você mudar um pouco o foco sempre que puder, seja para ajudar alguém, seja para se expressar. E, hoje, não faltam ferramentas nem canais para isso acontecer”, garante.