Cannes Lions e o D&AD, por exemplo, resolveram banir agências, anunciantes e delegados da Rússia das premiações como forma de pressão à Guerra da Ucrânia

Desde o início da invasão russa à Ucrânia, em fevereiro, uma série de empresas paralisaram ou deixaram o país, como uma forma de protesto, solidariedade e com o argumento de não contribuir indiretamente com o 'financiamento' da guerra, que vem deixando um rastro de destruição.

No mundo da publicidade, dois dos principais festivais baniram anunciantes, marcas e delegados da Rússia. O Cannes Lions foi o primeiro a excluir o país governado por Vladimir Putin na semana passada e, nesta quarta-feira (9), foi a vez do D&AD, que acontece nos dias 25 e 26 de maio.

Entretanto, agora, outro fenômeno começa a ganhar visibilidade, mas, diferentemente do primeiro movimento - apoiado em grande medida -, gera certo desconforto. Cidadãos russos começaram a sofrer com boicotes dos mais diversos tipos - mostra de cinema adiada, restrições a escritores, artistas e cineastas russos e, até mesmo, restaurante tirando o strogonoff do cardápio.

Mas a pergunta é: faz sentido criar essa “zona de exclusão”?

Para Luciano de Assis, professor e sociólogo da Universidade Presbiteriana Mackenzie de Campinas (SP), a comoção é “compreensível”. Representa uma forma de solidariedade a um povo que está lutando contra uma grande potência que, segundo ele, é impulsionada também pela campanha da narrativa da mídia ocidental.

Cena de 'O Encouraçado Potemkin', de 1925, um dos clássicos do cinema russo (Reprodução/ YouTube)

Como os eventos são recentes, ele acredita que as pessoas ao longo do tempo tendem a compreender a invasão como uma ação do governo, e não do povo russo. “Quando as pessoas se informam e percebem que até mesmo o povo russo é vítima de um governo de viés autoritário, com uma forma de controle social das mais intensas do planeta, a tendência popular de cancelamento pode ter menos força”, afirma.

O regime de Putin é conhecido pela forte censura no país, como demonstram ações recentes que criam barreiras para que as pessoas tenham acesso a informações sobre a guerra, com punição de até 15 anos de cadeia para quem usar termos como “guerra” ou “invasão”. Além disso, também usa a repressão para silenciar adversários. De acordo com estimativa da CIA, mais de 14 mil pessoas foram presas por protestarem contra a invasão à Ucrânia.

Em outras palavras, são iniciativas que podem pesar ainda mais sobre quem está vulnerável na guerra - mesmo que do outro lado -, e não nas oligarquias russas, que sustentam o poder. “Tudo que aponte para outra direção, erra o alvo e contribui para uma cortina de fumaça conveniente para os reais agressores”, explica.

Benjamin Rosenthal, professor da FGV EAESP, diz que os profissionais acabam pagando um preço pelo desejo que as instituições têm de participar do boicote. “Estilistas, músicos, até mortos como Tchaikovsky são barrados para que os organizadores da arte possam receber o selo de 'cidadão correto'”, afirma o especialista em marketing e cultura do consumo. “Mas esse absurdo logo deve mudar pois a opinião pública não gosta de ver injustiças como essas”.

Dentro da cultura do cancelamento, que normalmente trata de pessoas ou empresas que fizeram algo moralmente condenável, ele considera estranho que um país todo seja colocado nessa posição. “Quem errou foi o Putin. Logo Putin é e será o grande cancelado no mundo ocidental por muitos anos”, explica.

Festivais de criatividade
No caso dos festivais, como Cannes Lions e o D&AD, Felipe Bogéa, professor do MBA Executivo em Marketing da ESPM, vê um impacto direto nos profissionais que já estavam confirmados e tinham como objetivo de estreitar relações. “Se isso se mantiver por mais tempo, vai tornar o mercado publicitário russo muito isolado e fechado em si mesmo, similar a outras áreas da economia”, diz.

Marcos José Zablonsky, relações públicas e professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), também não vê com bons olhos a exclusão da Rússia de eventos pelo mundo. "Essa atitude de perseguição nos remete a um passado sombrio no período pós-segunda guerra mundial quando os americanos perseguiram produtores e autores hollywoodianos que tinham uma relação com o socialismo ou comunismo", ressalta.

Um exemplo citado pelo professor é o de Charles Chaplin, que se mudou dos Estados Unidos para a Inglaterra, sob suspeita de ser comunista. "Quando países atacam a literatura, a arte, a cultura, o esporte, com objetivo de criar um ambiente de conflito e formação de uma opinião pública desfavorável em relação a um povo e país, estamos chegando num dilema ético", diz.

Para Bogéa, da ESPM, essas atitudes mostram a maneira como as pessoas estão buscando manifestar seu apoio à Ucrânia. “Acho que a pergunta essencial a se fazer é se a ação em si vai impactar de alguma maneira o alvo político do ativismo".

A compreensão de Rosenthal, da ESPM, é de que existem três critérios principais que as marcas precisam analisar antes de aderir a movimentos como o atual. Primeiro, o impacto nos diferentes públicos, como governo, população e oligarcas russos; segundo, nos negócios, como vendas, contratos e empregos; e, terceiro, a percepção da opinião pública.