No meu escritório o assoalho tem 30 tábuas. O teto tem 18. A madeira vem de plantações legais, de árvores criadas para fornecer madeira. São árvores aparentadas com gado. Nascem para servir o homem. Mas gado é diferente. Aliás, qual o verdadeiro alcance da consciência da morte num boi ou de uma vaca? Dizem que o animal percebe que está prestes a morrer. Um pouco é verdade, pois eu fui capaz de perceber no olhar dos bois confinados no frigorífico, antes do abate, a sensação de que a morte estava por perto.
Eu fui com uma namorada de colégio ao frigorífico. O diretor do abatedouro era amigo de meu pai. A ideia era conseguir bexigas de boi para fazer membrana vibratória num telefone que minha turma da 4ª. série do ginásio estava fazendo. Foi nosso trabalho de ciências. Aliás, onde anda a Gisele? Era muito bonita. Deve ter se casado. De vez em quando me esqueço que ela tinha a mesma idade que eu e, se está viva, é uma senhora. Mas era um tesão.
A professora de ciências era outro tesão. Ela de vez em quando usava um vestido com uns botões que, quando abertos, permitiam a visão do sutiã. Era um alegria. Por falar em tesão, o nosso colégio tinha umas aulas que eram dadas por estudantes do curso normal. Aí, sim, era uma festa de peitos e coxas. A gente ficava olhando. O louco do Giovanni, que o pai era do consulado da Itália, ficava no fundo da sala e chegava a se masturbar. Era um louco. Nunca um professor ou bedel o surpreendeu. Teria sido o máximo.
Cheguei a criar a cena, imitando Giovanni sendo descoberto por uma professora. Adaptando uma piada, eu inventei que a professora (ou estagiária), ao surpreender o Giovanni em seus, digamos, “trabalhos manuais”, teria perguntado “mas o que é isso, Giovanni?” E ele respondia: “bem, já que estou com o pinto de fora, vou ao banheiro mijar”. Não achei graça nenhuma hoje. Na época as pessoas morriam de rir. Tudo mudou. Acho até porque não existem mais condições para esta prática. Mudaram a composição das cadeiras e o próprio desenho delas. Antigamente as carteiras eram duplas e, quando sentávamos no fundo, escorregando um pouco, saíamos da vista dos professores.
Lembrei-me de outra coisa. Toda manhã antes do início das aulas, ficávamos na sacada que dava para a rua, porque permitia ver no interior dos carros e, por consequência, as pernas das mulheres que usavam minissaia.
Na época não existia insulfilm. Então, quando pouco antes da sete horas uma professora chegava de carona num carrão importado, obedecia um ritual. Dava um beijo na boca e passava a mão no piru do cara. Um pouco mais do que só uma passadinha de mão fortuita. Era um carinho como que agradecendo. Um dia, ela chegou atrasada e a turma da varanda já estava diminuída. Os que esperaram, eu inclusive, comemoraram com tal alegria o que um amigo chamou de show erótico, que ela ouviu, tirou a mão e olhou para nós. Que brilhantemente começamos a disfarçar olhando o céu. Como se fosse possível um punhado de garotões se reunir para ficar olhando o poluído céu paulista.
Uma coisa que eu não me esqueço era que o colégio tinha uma enfermaria. Todo dia ficava de plantão uma enfermeira e, uma vez por semana, um médico ficava à disposição. Tudo de graça. Já que estamos falando de médicos, e a pandemia do novo coronavírus é o assunto do momento, estamos vivendo uma época inédita na história da humanidade. Não na letalidade, mas no cenário todo, dada a rapidez da informação. É a primeira vez que uma pandemia é acompanhada por toda humanidade “ao vivo e em cores”. E que podemos acompanhar os atos heroicos e a extrema burrice do ser humano.
Os boatos não se criam como antigamente. As pessoas no mundo inteiro podem acompanhar a evolução da doença e têm condições de saber exatamente como diminuir as chances de contágio. E também assistir à extrema idiotice de gente que provoca a sorte saindo à rua sem nenhuma proteção, chegando ao cúmulo de incentivar a formação de grupos. É brincar com a morte. Comecei este texto falando da dificuldade de se distrair no confinamento.
Já organizei meus lápis, minhas canetas e material de escritório. Minhas fotos estão todas arrumadinhas por temas. Faço uma ronda pelas pessoas que amo, por telefone, todas as manhãs. E escrevo, escrevo, escrevo. Mando e-mails. E, se eu fosse um sujeito mais grato, agradeceria aos céus por minha mulher me aturar. Até mesmo eu, que não posso me separar de mim, em alguns momentos desejo me dar uma folga.
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)