Se há até pouco tempo, os games e eSports sofriam com o paradigma de supostamente contribuir para o afastamento social de seus usuários ou, ainda, a responsabilização por comportamentos agressivos, a pandemia da Covid-19 acelerou um processo mais do que bem-vindo de amadurecimento do setor e aceitação do ecossistema gamer no Brasil. Com parte da população em quarentena, não apenas o número de novos jogadores cresceu, alcançando mais de 90 milhões no Brasil, como também houve um aumento de oportunidades e pontos de contato com outros perfis de público.

Assim como o sucesso das lives com artistas como Ivete Sangalo ou Sandy & Jr. nos canais sociais como YouTube, Instagram e em veículos de mídia, como Globo e Record TV, jogos como Free Fire, Fortnite e Avakin Life também têm servido como plataforma de transmissão de shows in-game, atraindo fãs de nomes como o DJ Alok e da banda de rap nacional Haikaiss, por exemplo.

DJ Alok é personagem do Free Fire desde 2019; live do artista na quarentena neste mês foi transmitida também dentro do game

O show do rapper americano Travis Scott, em abril, foi um marco para o movimento de intersecção dos games com a cultura pop. O cantor ganhou uma avatar no Fortnite e fez uma apresentação ao vivo em uma turnê de 23 a 25 de abril, dentro do jogo da Epic Games. O resultado? Mais de 45 milhões visualizações, com pico de 12 milhões simultâneos. Apenas a título de comparação, o recorde mundial de acessos simultâneos em uma live no YouTube é de uma transmissão feita pela cantora Marília Mendonça, em abril, que somou pouco mais de 3 milhões de pessoas ao mesmo tempo.

Modo Party Royale, no game Fortnite, conta com palcos virtuais para apresentações ao vivo de artistas como o rapper Travis Scott

Para Bernardo Mendes, game specialist da agência Cheil, é um movimento crescente de os jogos se posicionarem como redes sociais para trocas e interações, além do jogo em si. “O Fortnite sempre teve essa veia. A funcionalidade de chat é uma forma de socializar. Agora, com a criação do modo Party Royale para entretenimento, é um passo a mais de aproximação do jogo a uma plataforma social, onde o público entra para entreter e não para jogar, mas para compartilhar experiências, aproveitar os shows”. O especialista chama a atenção para um palco que ainda não foi ativado no jogo, dando a entender que o Fortnite deve trabalhar com outros artistas em breve.

No cenário brasileiro, projeto semelhante tem sido trabalhado pelo Free Fire, da Garena. No último dia 3 de maio, o DJ Alok promoveu um show ao vivo em um projeto em parceria com a Globo e o game. Além de abrir a transmissão com uma música criada para o mundial do jogo em novembro de 2019, o artista também estava usando uma réplica do traje que seu personagem no game também usa. Segundo Fernando Mazza, chefe de operações da Garena Brasil, o objetivo da companhia é criar experiências locais que funcionam para os jogadores em cada mercado.

Mazza, da Garena: experiências locais de Free Fire para criar relevância

Não à toa, já foram criados no Brasil, por exemplo, ações dentro do jogo com itens especiais, roupas para personalizar seus personagens e bônus exclusivos para datas temáticas como o Carnaval. “Os games, assim como a música, têm muito a oferecer. Com o Alok, pudemos transmitir a live também pelo Free Fire. Essa experiência foi muito legal para mostrar que é possível mesclar os dois mundos”, destaca.

Outras experiências da mescla com a cultura pop já haviam sido feitas. Durante o mundial de Free Fire, o rapper Mano Brown e o MC Jottapê, da série Sintonia, da Netflix, cantaram uma música criada para os fãs do game. A canção fez sucesso e pouco tempo depois foi lançado um videoclipe que contou com participação de streamers de Free Fire.

Na semana passada, foi a vez do Avakin Life transmitir um show ao vivo da banda Haikaiss. O projeto, em parceria com a Som Livre, teve mais de 2,5 milhões de visitas durante a apresentação, que ficou disponível na plataforma por 72 horas.

Show da banda de rap brasileira Haikaiss foi transmitido no game Avakin Life

Negócios
Com previsão de receita global de US$ 1,05 bilhão em 2020, segundo a consultoria Newzoo, o mercado de eSports segue aquecido mesmo com a pandemia. Principalmente com o potencial das lives, que devem render receita de US$ 19,9 milhões só com streaming, grandes marcas têm encontrado oportunidades de novos formatos e conteúdos.

Mendes, da Cheil: “Games são cada vez mais sociais”

Segundo Daniela Branco, diretora de desenvolvimento de negócios da agência ABCM, especializada em games, as plataformas de streaming viraram uma opção de estratégia para as marcas durante a quaretena. “Este já é um terreno explorado pela indústria de games e eSports há anos. Eles já têm esses modelos sólidos e ‘produtizados’, então a curva de adaptação é menor”.

Vale lembrar que o consumo de streaming de games em plataformas como Twitch e YouTube Gaming teve aumento de 10% na quarentena. Não à toa, influenciadores e novos produtores de conteúdo estão surgindo nesses espaços. O lutador do UFC Anderson Silva, por exemplo, inaugurou seu canal como streamer da Twitch no último dia 7 de maio. O atleta vai transmitir partidas ao vivo do game Call of Duty direto de sua casa, além de responder perguntas de seus fãs.Para Leandro Valentim, head de games e eSports da Globo, o momento atual pede inovação e a quebra de conceitos e padrões, permitindo ideias e entregas multiplataforma.

Humor, esporte e cultura gamer são as apostas de Anderson Silva como streamer

“A comunidade gamer há alguns anos já responde por mais de um terço da população brasileira. Universo gigante, com maioria jovem, conectada e engajada, que cresce em ritmo acelerado. O que vem mudando é a exposição fora da comunidade, desmistificando preconceitos e mostrando sua força e versatilidade. O casamento entre games com as competições de jogos eletrônicos (eSports) e o mainstream veio para ficar”.

Daniela, da ABCM: “As lives são tradicionais no cenário de eSports”

Recentemente, a Globo também promoveu o torneio Futebol em Casa, reunindo jogadores de times brasileiros como Gabigol, do Flamengo, em uma competição virtual e transmissões no SporTV. Segundo Valentim, a proximidade com algumas das maiores publishers do mundo permitiu o desenvolvimento ágil de iniciativas que atendessem a este momento de tantas restrições, “para que pudéssemos levar entretenimento e diversão, e também estimular as pessoas a ficar em casa”.

Mas as transmissões ao vivo não se limitam a conteúdo de entretenimento. O Brasil tem também experimentado na pandemia live streaming com foco em educação e profissionalização no cenário gamer. Quem lidera o movimento é a Live Arena, que, em parceria com o Senac, tem feito transmissões de cursos gratuitos EAD de pro player de League of Legends e criador de conteúdo, entre outros. Quem explica os detalhes é Rodrigo Rivelino, da Live Arena.

“Nesse período de pandemia, entendemos que os conteúdos gratuitos poderiam aumentar o interesse pelos nossos cursos, ao torná-los mais acessíveis, até para o público testar esse ambiente e também os nossos conteúdos. O cenário dos games ainda tem muito a ser trabalhado e desenvolvido, no que diz respeito ao entorno do jogo, das competições”, destaca.

“Muitas oportunidades de negócios ainda vão surgir no ecossistema gamer, assim como acontece com os grandes movimentos socioculturais. A tendência é surgirem cada vez mais eventos, conteúdos, plataformas de ativações, arenas e ambientes de experiências”, finaliza.