A comunicação na era das redes sociais segue somando ondas de complexidade, conforme a internet se mostra muito mais profunda do que se julga pela superfície e quase imprevisível. Foto, alguns caracteries, uma hashtag, segundos de um vídeo, qualquer expressão pode gerar uma situação caótica.

Profissionais de relações públicas funcionam como um farol guiando pessoas e empresas em tempestades potencializadas nas redes (Foto: Pxhere)

Mais ou menos como o mar. Quem entra tem a consciência da vulnerabilidade que o cerca. Águas mudam em instantes. E o que no horizonte é uma ondinha cresce de forma incontrolável, deixando destruição por onde passar. Por isso ter recursos tecnológicos e comportamentais, saber pedir ajuda e lidar com a situação até ela se acalmar é questão de vida ou morte. Em outras palavras: estar preparado para tudo.

De volta à comunicação, um precioso recurso é o trabalho das agências de relações públicas, que têm o gerenciamento de crise entre seus pilares. São como um farol: estrutura firme que ilumina a quilômetros de distância para conduzir o que for preciso em segurança até a terra firme.

Assim como o farol, as agências estão preparadas para guiar a qualquer momento seus clientes, especialmente nesse instante de hiperconectividade. Gabriel Guimarães, gerente de contas da Edelman Brasil, comenta que nenhuma pessoa, empresa ou instituição está imune a uma crise, e isso seria uma questão de tempo. “Nossa recomendação é que todos estejam preparados para qualquer evento, a partir de um manual de crise e da organização de um comitê com integrantes treinados. É importante que as instituições atuem sempre a favor de suas reputações, construindo a confiança de seus stakeholders. Empresas e pessoas consideradas confiáveis conquistam o ‘colchão de proteção’ e a licença para falar – e ser escutada – em momentos conturbados”, diz.

Fernanda, da CDN: gestão começa antes (Foto: Divulgação)

Fernanda Dantas, head de digital e inteligência de dados da CDN Comunicação, concorda e fala que a maioria das crises é previsível. “A boa gestão de crise começa antes dela acontecer, com identificação de riscos e planejamento, definição de políticas de governança e comunicação adequadas, monitoramento e treinamento. É possível se preparar”, diz.

Com visão semelhante, Fátima Pissarra, CEO da Mynd, lida diretamente com influenciadores e acredita no poder da prevenção e de ter uma relação próxima para tentar minimizar os impactos.

Fátima, da Mynd: relação próxima (Foto: André Schiliró)

“Eles estão cada vez mais expostos e precisam prestar atenção. Os ânimos estão exacerbados para as pessoas apontarem erros e fazerem julgamentos baseados em uma frase – muitas vezes tirada do contexto. As pessoas buscam posicionamentos feitos em outras ocasiões, para ajudar nesse cancelamento. Um exemplo: o Cocielo, que fez um comentário, e acharam tuítes antigos semelhantes; ou o Vitão, que postou um vídeo cantando e as pessoas xingaram ele por uma questão que não tinha nada a ver com o vídeo em si”, diz.

SEM FRONTEIRAS
Num passado nem tão distante, haviam protestos na frente da fábrica ou sede de uma empresa, que mobilizavam pessoas, porém num ambiente relativamente controlado. No entanto, hoje, especialistas alertam que não há barreiras físicas nem limites para o acesso às atitudes de uma marca ou pessoa. “A crise pode se tornar global em menos de uma hora, enquanto uma empresa leva cerca de 21h para tomar medidas e se defender ou levar um esclarecimento ao público. Em 24h, uma crise pode se estender para até 11 países e mais da metade das empresas leva mais de um ano para reconquistar o valor de mercado de suas ações”, diz Guimarães, citando o estudo Contendo uma crise – Lidando com desastres corporativos na era digital, do escritório Freshfields Bruckhaus Deringer.

Gabriel, da Edelman: ter preparação (Foto: Divulgação)

Adriane Ahlers, diretora de novos negócios e marketing e gestora do Comitê de Crise da RPMA Comunicação, fala que a complexidade aumentou após a aproximação das marcas com consumidores na internet, com a abertura do diálogo e posicionamentos menos genéricos.

E isso foi potencializado pelo cenário de pandemia, tornando consumidores mais propensos a julgar comportamentos de forma crítica em função de altas expectativas. “Por meio de condutas inadequadas, atitudes desconectadas, contrárias ao propósito, desalinhadas ao discurso e ao contexto da sociedade aliados à disposição de alguém a dar visibilidade ao fato é que se dá o cancelamento. A internet é como combustível adicional”, avalia.

CANCELADOS E CANCELADORES
Neste momento, a rapper e ex-BBB Karol Conká vive talvez o maior “cancelamento digital” registrado em números no Brasil. Ainda no reality show, a cantora perdeu seguidores, contratos e possivelmente futuras parcerias com marcas com as quais já havia trabalhado. Quando saiu do Big Brother Brasil 2021, ela recebeu 99,17% de rejeição do público sob uma enxurrada de comentários, piadas, críticas, xingamentos e ameaças.

Fábio Mariano Borges, sociólogo do consumo da ESPM, aponta outra faceta dessa situação e reflete que o BBB está sendo palco de “ódio recreativo”. Para ele, mesmo marcas, que sofrem com cancelamentos, este ano ocuparam a posição de canceladoras ao fazerem piadas e promoções relacionadas a artista sem se preocupar com as consequências do linchamento moral.

“É a primeira vez que vejo a celebração do ódio com a participação de marcas. Todo mundo passou do limite. Do bullying, passamos ao linchamento digital sem qualquer tipo de freio moral. Não cabe a uma marca tirar proveito da banalização do mal, como dizia a filósofa alemã Hannah Arendt, porque as consequências à vida da artista e de sua família são incalculáveis”, afirma. Segundo o Observatório da TV, Karol cogita processar empresas que usaram sua imagem sem autorização.

Verdade, rapidez e atitude decidem o sucesso no gerencialmento de crises (Foto: Unsplash)

ÁRDUO RECOMEÇO
Apesar do desafio, Flávio Santos, CEO da MField, acredita que ela vai se recuperar se seguir o tripé da gestão de crise: reconhecimento, verbalização do aprendizado e mudança de comportamento. “Reconheceu que em alguns momentos perdeu a mão, mas é inegável o trabalho que ela construiu, que é uma mulher de fibra e com alma de artista. Ela sabe se reinventar, e os fãs querem isso. Pessoas gostam e desejam aplaudir o sucesso, é um movimento natural querer que ela dê a volta por cima.”

De modo geral, comunicadores que lidam com celebridades, empresas, marcas e instituições públicas acreditam que, sim, há saída, para consertar o estrago. Segundo pesquisa da Porter Novelli nos Estados Unidos, 79% dos ouvidos dizem que “descancelariam” uma empresa se ela se desculpasse e se comprometesse a fazer mudanças.

Eraldo, da InPress: é possível reverter (Foto: Divulgação)

Para Eraldo Carneiro, head de gestão de reputação e propósito na InPress Porter Novelli, representante da rede no Brasil, a marca precisa ter coerência e maturidade para se posicionar diante de um cancelamento e atenuar os impactos. “É possível revertê-lo. É uma postura extrema, uma disfunção das redes sociais, potencializada pelo clima de polarização que domina o mundo hoje. O cancelamento pode até tornar-se uma oportunidade de rever seu comportamento e é justamente isso que espera parte dos consumidores”, diz.

Além de reformular a estratégia de comunicação e marketing, a assessoria de imprensa é imprescindível no gerenciamento da crise e na reconstrução da imagem da marca, lado a lado com ações concretas que mostrem arrependimento e mudança de postura.

Melina Tavares: inter movimenta rápido (Foto: Divulgação)

Melina Tavares, CEO e fundadora da Melina Tavares Comunicação, acredita que esse momento deve ser enfrentando com muita rapidez e diálogo, buscando se conectar com os consumidores e compartilhando como o problema está sendo tratado. “Depois desse trabalho bem feito, a marca pode, sim, se recuperar do cancelamento. A internet deixa rastros, mas também movimenta informações e notícias de forma muito rápida, dando ênfase a uma questão com rapidez e substituindo-a por outra na mesma velocidade”, diz.

O caminho é longo e com pontos inegociáveis. Carneiro elenca fatores cruciais na gestão de uma crise de relacionamento e imagem. “Primeiro, autenticidade. É a regra número 1 de comportamento nesta era de hipertransparência. Não há espaço para falar uma coisa e fazer outra. Tais dissonâncias geram mais desconfiança dos públicos. Segundo, velocidade de resposta. Isso demanda monitoramento real time das reações dos públicos nas redes sociais, sobretudo dos influenciadores, que estão cada vez mais pulverizados, além de um posicionamento rápido e claro. Por último, diálogo. Num ambiente radicalizado e polarizado, é fundamental que a empresa se abra para escutar as pessoas e estabelecer uma base para entendimento do problema”, orienta.

Adriane, da RPMA: requer versatilidade (Foto: Divulgação)

O QUE NUNCA FAZER
“Tentar enganar o consumidor”, “negar e debochar”, “fingir que não está acontecendo nada”, “maquiar a situação”, “não se pronunciar”, “não reconhecer os danos”, “não assumir a responsabilidade”. Os profissionais se complementam quando questionados sobre os piores erros na hora de reverter um cancelamento.

“A negação dos fatos e seus impactos, reações inflamadas às críticas, falta de posicionamento, intolerância com as demandas que a crise aponta podem colocar toda a estratégia a perder”, alerta Adriane, da RPMA.

Já Melina observa que os consumidores querem respostas e sentem quando ela é verdadeira ou não. “Mesmo se a omissão ou mentira passar despercebida, pode vir à tona mais tarde. Consequências podem ser irremediáveis para uma marca, que perderá sua credibilidade”, diz.

Carneiro, da InPress, defende a necessidade de ser empático. O discurso tem de estar em sintonia com as ações e não apenas ser ‘politicamente correto’ ou jogar panos quentes na ira do grupo contestador. “Seja claro, direto e – se possível – atue de forma personalizada. Faça uma boa lição de casa. Cancelamento massivo não é uma aversão gratuita, ele deve ser encarado também como uma forma de chamar a atenção das marcas. Fidelidade e apreço por seus produtos não lhes isentam desse turbilhão digital. Empresas com propósito autêntico tendem a se sair melhor.”

Fátima pondera, no entanto, que sempre é complicado, porque às vezes, mesmo a pessoa se arrependendo, o julgamento e o cancelamento parecem que aumentam em vez de diminuir. “Hoje é como se a pessoa não tivesse uma segunda chance. Várias vezes a gente aconselha a realmente permanecer em silêncio após o primeiro posicionamento, e esperar tudo passar, porque cada vez que a pessoa fala parece que só aumenta. Acho que o principal é não soar fake e dar uma resposta rápida”, opina.

Para lidar com essa complexidade, os profissionais que atuam como farol combinam características além das habilidades de PR. “Precisam estar atentos ao que acontece nas redes sociais, saber usá-las e entender suas características nativas para criar estratégias. Não é necessário que todos sejam especialistas em redes, mas saibam lidar com elas”, diz Fernanda, da CDN. “Preparo operacional para lidar com cenários complexos e adversos e versatilidade que permita a criação de novos compromissos das marcas diante da crise”, acrescenta Adriane, da RPMA.

Flávio Santos, da MField: tripé da gestão de crise tem reconhecimento, verbalização do aprendizado e mudança de comportamento (Foto: Divulgação)

Enquanto o mercado se adapta para lidar com tudo isso, Santos, da MField, alerta que o cancelamento não é só uma fase, mas um período histórico com desdobramentos que guiarão a sociedade. “É difícil passar por isso. Mas as pessoas estão aprendendo que o termo cancelar é muito mais forte do que uma expressão do momento.” Em 2019, o dicionário Macquarie elegeu “cultura do cancelamento” como representante do ano. Resta saber se também será a de 2021.