Domadores de Leões
Feras. No júri, no público, na competição, nos seminários. Em Cannes todos mostram as garras, rugem, competem, cada um a seu modo.
Duas histórias, dentre as muitas que testemunhei, ilustram bem o clima no circo da Croisette: uma vivida como jurado de filmes, outra como participante da plateia mais furiosa que já se viu contra um presidente de júri.
1998. Eu era jurado de Film e havia uma pedra no meu caminho. Surgiu de surpresa dentro de um dos rins (não lembro se era o direito ou o esquerdo) na véspera do meu embarque, o que motivou o atraso de um dia em minha viagem para Cannes, e a preocupação de ser atacado de novo por aquela dor miserável, agravada pelo fato de estar longe de casa.
Parti ansioso e com um bom suprimento de remédios para o eventual retorno da pedra, que felizmente preferiu desfazer-se em areia. Por conta disso, perdi o jantar de apresentação dos jurados e cheguei praticamente na hora de entrar em campo. A alusão futebolística fazia mais sentido naquele ano, porque acompanhávamos em paralelo a Copa do Mundo, rolando na França, em cidades relativamente próximas, com direito a excursões de brasileiros para ver jogos e outras atrações especiais a que o pobre jurado não podia ter acesso. O trabalho era intenso. Longo durante o julgamento e esticado nos contatos com os não saxões, especialmente latinos, para nos protegermos do poder dos donos da festa, que não tinham nada a ver com os donos da casa. Cannes sempre foi uma locação privilegiada para a passarela onde desfilam ingleses, americanos e os que com eles mantêm afinidades culturais e/ou linguísticas. Na época, isso era mais evidente do que hoje. E o presidente do júri era um francês, fato raro.
Jean-Marie Dru, logo em sua primeira preleção, foi deselegantemente corrigido na pronúncia de uma palavra por um jurado britânico. Desvencilhou-se, sem se abalar, da casca de banana que lhe atirou o saxão, mostrando porque tinha sido designado para aquela missão complicada. De tempos em tempos, durante os trabalhos, seu pulso firme foi fundamental para cortar outras tentativas de lhe minar a autoridade. Era um período de muitos preconceitos pairando sobre os latinos, alguns até bastante justificáveis. O Brasil nem de longe desfrutava do prestígio que tem hoje, tudo de bom que aparecia de nossa produção era quase automaticamente suspeito de ser fantasma e a mão do “primeiro mundo” tendia a ser mais pesada contra nós. Não fosse a união latina e a atenta liderança do presidente do júri, não teríamos conseguido um resultado tão expressivo em Press & Poster e Film, e levado uma agência brasileira pela primeira vez ao título de Agência do Ano.
Brilhou a DM9. Bem mais do que a seleção canarinho, que decepcionou o mundo com sua estranha amarelada no Stade de France.
Retrocedendo três anos, encontramos um outro presidente de júri, em situação totalmente diversa, e com atuação oposta à do imparcial Jean-Marie Dru. 1995, ano em que nenhum filme foi julgado suficientemente bom para ganhar Grand Prix, em que os prêmios concedidos bateram recordes de contestação, e em que a agência mais premiada foi, por estranha coincidência, a empresa que tinha o nome do comandante dos jurados: Frank Lowe.
Na cerimônia de premiação, a revolta do público era tão grande que a simples menção ao nome “Lowe” desencadeava gritos, vaias e assovios em tamanha dimensão que nem o apresentador do evento conseguia falar. O presidente do júri, então, nem pensar. Tudo levava a crer num inédito final de festival, com o Palais dominado pelo caos, sem realizar sua mais solene entrega de prêmios. Foi quando Joe Pytka subiu ao palco. Do alto de sua imagem viking, sustentada pela admiração de todos os presentes pelo talentoso diretor, Pytka limitou-se a gesticular, pedindo com as mãos que baixassem o volume das manifestações, e a repetir algumas vezes pequenas variações de “come on, guys!”.
Pouco a pouco, a galera sossegou. Lá estavam os primeiros young creatives brasileiros, provavelmente de olhos arregalados com o inusitado episódio. Que estreia!
Eram tempos em que Cannes pertencia aos criativos, sem precisar se chamar “festival de criatividade” para disfarçar os malabarismos por maiores resultados financeiros. Tempos leves e rebeldes, em que a liderança era exigida além dos cargos, em que competência e currículo faziam mais diferença do que poder e discurso. Tempos em que Jean-Marie Dru e Joe Pytka podiam, cada um a seu modo, exercer papéis heroicos: um domando o júri que tentava acuá-lo, outro salvando um presidente, sem credibilidade e sem noção do perigo, de ser devorado pelos que não se conformaram com sua voracidade.
*Adilson Xavier é publicitário e escritor