O criativo pergunta e o cliente responde
– uma conversa com Eduardo Tracanella**
Todo mundo que vai ao Festival de Cannes quer voltar para casa fazendo um trabalho melhor. E isso inclui os clientes, que, de uns anos para cá, têm ido em número cada vez maior ao festival. Como eu, você e todo mundo que trabalha em agência dependemos deles para aprovar nosso trabalho, eu só poderia ver o fenômeno com ótimos olhos. Por isso, mais do que dividir cadeira no auditório do Palais, vou dividir um texto com um cliente que foi a Cannes para tentar entender melhor esse fenômeno. Convidei nosso cliente Eduardo Tracanella, superintendente de marketing do Itaú, para uma conversa sobre Cannes. É uma conversa franca sobre o festival e sobre como podemos fazer melhores trabalhos juntos daqui pra frente.
O que acha da ida cada vez maior de clientes ao Festival? Você aconselharia colegas seus a irem também?
Eu acredito que repertório é fundamental para todos que de alguma forma querem fazer a diferença no mercado publicitário. E isso vale para todos mesmo, sem exceção. Um anunciante sem repertório não consegue aprovar bem e nem reprovar com qualidade, o que é tão importante quanto. Nosso papel é cada vez mais de inspirar, de provocar e de estar realmente aberto e capacitado para receber em troca produtos criativos que de fato possam fazer a diferença e sejam memoráveis. Nesse contexto, o Festival de Cannes acaba sendo uma bela oportunidade, mas não a única. Acredito que repertório se busca de diversas formas e quando temos isso como prioridade é preciso mudar um pouco a cultura e as agendas: não dá para um profissional de propaganda só fazer hora extra, tem de fazer hora útil também. E isso num cenário de muito trabalho e com o desafio de entregas a todo instante só é possível quando se entende a importância de assumir o protagonismo e seu papel de liderança nesse processo. Foi-se o tempo em que bastava ao anunciante se cercar de criativos que trariam num passe de mágica, de bandeja, a solução para sua marca. Hoje precisamos de algo mais para poder inspirar e extrair das agências o melhor delas e o melhor das melhores pessoas delas.
Você acha que número de prêmios deveria ser um critério para a escolha de agências por anunciantes?
Sim, mas somente prêmios que mostrem a capacidade criativa de verdade, aquela que a gente vê na rua. Na minha opinião, prêmio que ninguém nunca viu joga contra, porque só denota a incapacidade de entrega no mundo de verdade. Não me importa que a agência tenha os melhores; para mim, importa que sejam os melhores para seus clientes. E esse é o desafio de verdade: ser campeão no campo e não no videogame.
Pesquisas mal usadas muitas vezes jogam mais a favor do processo sem riscos do que do trabalho final. E infelizmente não conseguimos veicular o processo. Quando você vê o rolo dos vencedores de Cannes, gostaria que alguma coisa fosse diferente no dia a dia dos grandes departamentos de marketing?
Quando a gente vê os rolos e os cases legais, só vemos a parte boa. Na ficha técnica não vem um depoimento da agência sobre como foi o processo, como foi a aprovação, se teve ou não pesquisa, se foi ou não a fórceps. Também não vem um depoimento do cliente de quantas vezes teve de pedir algo assim, de como teve dificuldade em reorientar a agência e adequar o produto final a algo que fizesse a diferença para ele. E acho essa uma reflexão importante. Se estamos falando de fazer história, de fazer coisas memoráveis, devemos deixar de lado o mimimi. O anunciante deve assumir o protagonismo e refletir sobre como usa as ferramentas e a tecnicidade que estão a seu dispor: se como muleta ou para assumir riscos de forma consciente. A agência, a meu ver, tem a oportunidade de entender que o seu desafio é fazer algo memorável dentro do jeito como o cliente opera, entender que essa é a dificuldade, esse é o desafio. Enfim, acho que quando atribuímos a culpa de uma propaganda medíocre ao processo estamos perdendo a oportunidade de discutir algo mais relevante: cultura, sucessão, capital humano. Nosso desafio maior é desenvolver uma geração que volte a ter vontade de fazer cases de verdade, de assumir o risco de dar certo, de mudar efetivamente a vida das pessoas. O resto é só desculpa, só uma forma de, delegando a responsabilidade, nos manter conformados com o status quo.
Depois de voltar de Cannes e ver tanta coisa boa, quando você vê o que está no ar no Brasil sente que falta gente aprovando propaganda que realmente goste e acredite em seu poder?
Acho que sim, que falta gente criando e aprovando. Hoje esse processo acabou virando um ciclo vicioso no qual o anunciante se contenta com algo mediano e a agência em aprovar algo na zona de conforto do cliente e, por consequência, sua também. Gostar e acreditar em propaganda faz a diferença, mas técnica e repertório também. Acho que a resposta à sua pergunta passa também pela forma como encaramos propaganda nos dias de hoje, em que as pessoas mudaram muito e o consumo de meios também. Voltando de Cannes fiquei com uma sensação ambígua: de que tem muita coisa legal por aí sim, mas nada que nunca tenhamos discutido por aqui. Acredito que a discussão é também sobre a forma como clientes e agências estão organizados e como funciona o modelo de relacionamento: fica difícil fazer coisas diferentes hoje, quando o modelo ainda é o de ontem. E nem acho que o problema é falta de coragem de anunciantes e agências. Tenho certeza de que todo mundo gostaria de fazer e aprovar as melhores campanhas, mas o nosso balizador está um pouco desatualizado e condicionado a um modelo mais seguro, mais conservador, respaldado pelo senso comum, falta de repertório e, no caso dos anunciantes, pela falta de entendimento sobre o retorno de longo prazo que se tem a partir de boa propaganda, que faz bem para as pessoas e por consequência para a marca.
E, para terminar, Tracanella, fale a verdade: dá vontade de subir naquele palco para levantar um Leão de Ouro? Ou é só uma coisa nossa, de agência?
Olha, eu nunca tive a oportunidade de ganhar, então não sei dizer o quanto é legal. O que posso afirmar é que não é isso que move os anunciantes e que nossa maior ambição é trazer valor para a nossa marca e resultado para o negócio. Dentro dessa perspectiva, ganhar com algo que não foi relevante nessas duas esferas e que muitas vezes não foi nem para a rua não faz a menor diferença – pelo contrário, acho meio “vergonha alheia”, meio perda de tempo e pouco fair com os acionistas. Mas ganhar como decorrência de uma estratégia bem-sucedida, que trouxe efetivamente resultado para nós e virou conversa na vida das pessoas, aí sim, deve ser incrível.
*Aricio Fortes é diretor de criação da Africa e foi jurado no Cannes Lions 2013
**Eduardo Tracanella é superintendente de marketing do Banco Itaú