Versão de 15 segundos
Naquele ano, 1988, a cerimônia de premiação no Festival de Cannes era um momento bem glamoroso. Na “Entrée des Artistes”, os vencedores eram recebidos pelo cerimonial e conduzidos a um lounge montado atrás do palco. Minha mulher, Zaira, e eu, sentamos em um sofá e logo tínhamos taças de champagne nacional nas mãos para brindar com alguns dos demais ganhadores.
Eu ainda era um “aprendiz” e pude conhecer alguns ídolos do meio que lá estavam nesse privilegiado espaço: o veterano e consagrado diretor espanhol Francisco Daniel, Luis Casadevall, Tony Scott, entre outros. E se destacando, pelo tamanho e pelo talento, o mais premiado diretor da história de Cannes: Joe Pytka. Junto conosco estavam Washington Olivetto (com quem tive o privilégio de trabalhar em dezenas de filmes e de Leões), minha sócia Patricia Viotti e Wander Levy, que ganharia seu primeiro Leão de ouro.
Começa a cerimônia. Pela fresta da cortina, vemos o Palais lotado, com duas mil pessoas de black-tie. Dá um friozinho na espinha… Cada ganhador era conduzido ao palco por uma bela recepcionista e depois voltava ao lounge, onde recebia os cumprimentos dos demais. Chegou minha hora: estava sendo anunciado “Mãe e filha”, para Phebo (que a seguir foi comprada pela Procter & Gamble) e para a agência do Wander e Alemão. Foi um dos maiores aplausos que já recebi em Cannes! O público de pé e alguns gritos de “Grand Prix!”…
Wander chorava no palco abraçado comigo e o Leão. Ao voltarmos para o lounge, vejo o Pytka olhando a lista de vencedores nas mãos. Ele vem na minha direção me cumprimentar: “brilliant!”.
Pouco depois, sou chamado novamente para o palco, com a apresentação de “Passeata”, para W/Brasil. Um comercial criado pelo Washington e pelo Nizan Guanaes (com quem também viria a ganhar vários outros Leões…), do qual me orgulho de ter dirigido e que considero um dos melhores e mais importantes de todos os tempos. Ele viria a ganhar ouro em todos os festivais nacionais e internacionais que participou, além de ter sido escolhido por algumas das maiores escolas de cinema do mundo como tema de estudo e análise técnica. Enfim, um grande filme. E na hora, para surpresa, recebeu uma grande vaia. Washington e eu no palco com o Leão nas mãos, e uma vaia magnífica e inesquecível… Em minutos fui do paraíso (com “Mãe e Filha”…rsss…) ao inferno.
Ao voltar para trás do palco, Joe Pytka corre em minha direção, me pega pela cintura, com suas delicadas mãos de jogador de basquete, e me ergue a uma altura acima de seus 2 metros e 12 centímetros, me causando até vertigem. E com riscos de despressurização… Ele gritava: “Your film is superb! Wonderful! You did better than I would! Fuck, I loved it!!!”. E iniciou-se ali uma amizade entre nós que duraria anos e anos de champagne (Dom Pérignon)…
Alguns jornalistas internacionais depois explicaram que parte do público, maioria deles franceses, entendeu que o filme tinha postura fascista (…) e que eles ainda tinham a imagem da ditadura militar no Brasil… Enfim, uma espécie de protesto político… Mas, nosso filme nada tinha disso, e muito ao contrário, era uma tirada de sarro em cima da repressão, com muito humor e ironia.
Este encontro entre Pytka e eu foi registrado por alguns repórteres, e uma foto nossa, abraçados lado a lado, correu o mundo, com a incrível diferença de estatura entre nós. Meu amigo Celso Loducca chegou a criar um anúncio para mim, premiado no Anuário do Clube de Criação de SP, onde era ilustrado com a foto e a frase: “Joe Pytka e sua versão de 15 segundos”!
Ano seguinte, recebi nove Leões, sendo quatro de Ouro. A seguir, mais e mais Leões, lembrando que sempre em “Film”, e com outras parcerias incríveis de criadores maravilhosos como Alexandre Gama, Celso Loducca, Marcello Serpa, Sergio Valente, Átila Francucci, Camila Franco, Ruy Lindenberg, Ercilio Tranjan, Clovis Calia, Jacques Lewkowicz, Mario D’Andrea, Marcelo Pires, Ana Longobardi, Carlos Castello, Ricardo Freire, Newton Pacheco, Amaury Bali Terçarolli, Toni Segarra, o criativo do século na Espanha, e tantos outros que certamente cometi o pecado de esquecer de citar… (que me perdoem).
Cannes é um constante “meeting point”. É um palco de apresentação de talentos ao mundo. Tive o privilégio de conhecer e compartilhar minhas alegrias (mesmo com algumas vaias… Que foram poucas, graças a Deus!…) com outros diretores como Tarsem, Jean-Pierre Jeunet, Riddley Scott, Michel Gondry, Spike Jonze e tantos que vieram a brilhar na dramaturgia e que conseguem seguir transitando brilhantemente entre estes dois mundos, mas que pertencem à mesma galáxia: saber contar uma história.
*João Daniel Tikhomiroff é cineasta e chairman-executivo da Mixer. Ganhador de 41 Leões em Cannes, é o diretor mais premiado do Brasil e o segundo do mundo no Cannes Lions, atrás de Joe Pytka