O rugido da democracia

Lá, era um outro festival, um festival que não existe mais. Aqui, era um outro país, um país que não existe mais.

Em 1984, após 20 anos de uma ditadura militar, eu era um entre um milhão de pessoas, na Avenida Presidente Vargas, em frente à igreja da Candelária, escutando, vivendo e participando intensamente do maior e mais vibrante briefing da história do país. O comício das Diretas Já, que gritava pela volta da democracia no Brasil.

A minha agência, Contemporânea de tudo isso, havia sido inaugurada naquele ano e começava a sua luta contra a ditadura da mesmice, da imitação, da falta de originalidade e inovação, além do comodismo, que ameaçavam, como até hoje ainda ameaçam, diariamente, o desempenho das agências brasileiras, particularmente as cariocas.

Acrescente-se agora um produto, que também não existe mais. O Jornal do Brasil, um dos mais importantes veículos da mídia impressa brasileira (hoje existe apenas em versão digital) e um dos primeiros clientes da Contemporânea, cujo slogan era “Um jornal é tão bom como as verdades que ele diz”.

A ideia estava ali, pulsando na minha frente. Era só saber ver. E desenvolver. Mergulhei, então, no departamento de pesquisa do JB, como o jornal era conhecido, e uma semana depois o comercial de 90 segundos estava pronto.

Era praticamente um anúncio impresso, filmado quadro a quadro, com um travelling sobre as capas de 14 edições do jornal, que mostravam, através de suas manchetes e fotos, o quase-final do longo e sofrido processo de redemocratização do país até aquele momento. Cada página era intercalada por uma das letras da palavra “democracia”, enquanto a trilha sonora reproduzia o som direto referente às notícias, com vozes dos militares, congressistas, sons de rua, passeatas etc.

No final, o som do esquecido Hino da República, no lamento de uma harmônica de boca (gaita), sublinhava a frase que surgia na tela, após a palavra “democracia”: “Abre as páginas sobre nós”. Na assinatura de encerramento, Jornal do Brasil, a palavra “jornal” desaparecia, deixando na tela somente a palavra “Brasil”, com um acorde sonoro marcante do final do hino. Assim, coisa rara na época, o cliente abria mão da permanência maior de seu nome na tela, em benefício do Brasil. E não era demagogia, não. Era orgulho mesmo. E esperança.

O resto, como se diz, é história.

As eleições diretas, rejeitadas pelo Congresso, só vieram a ocorrer cinco anos depois. Mas o comercial, aprovado (e veiculado, claro) pelo cliente, foi o primeiro que a Contemporânea inscreveu naquele festival, na época só de filmes, que acontecia no balneário francês.

Primeiro comercial – e único. Pois só inscrevemos um naquele ano. Isso mesmo: um comercial. Certamente um recorde minimalista em Cannes. E provavelmente recorde de aproveitamento, pois o comercial ganhou um Leão de prata. 100% de aproveitamento, pois.

Detalhe: além da simplicidade e da carência de recursos técnicos que havia na época, inclusive com dificuldade e deficiência na transcodificação do nosso sistema PAL-M para o sistema de exibição no festival, o comercial, por razões óbvias, era simplesmente intraduzível, ou seja, ele foi para lá exatamente como foi veiculado aqui, em bom português. Praticamente ininteligível para a maioria quase absoluta do júri, a não ser por algum altamente improvável brasilianista ou profundo interessado na política brasileira.

O que eu soube, depois, foi que o nosso jurado Eduardo Fischer, que eu nem conhecia pessoalmente, explicou a importância histórica e o sentido do comercial, com a intensidade e a emoção de um brasileiro presente nas passeatas e comícios.

Na verdade, na emocionante verdade, o comercial traduziu o que estava nos corações e mentes de 128 milhões de brasileiros/clientes que passaram o briefing para a agência. E quem, a meu ver, melhor traduziu o comercial foi a querida jornalista Lúcia Leme (onde anda você?), que escreveu na época (antes do comercial ser premiado em Cannes) um dos mais belos textos que eu já li sobre um trabalho de propaganda, em sua coluna Publicidade na TV, na revista Amiga: “A verdade dessa peça do Jornal do Brasil está na gente. Em nós, pessoas, brasileiros, indivíduos, cidadãos, cansados, heroicos, bravos sofredores deste Brasil (…).

É muito bom ver o brasileiro e seus órgãos de imprensa tendo e mostrando seriedade e credibilidade, duas coisas muito importantes e tão necessárias num país levado na brincadeira por nós mesmos e por aí afora.

Como se fosse feito para gerar um suspense, a narrativa da peça em questão vai associando cada letra da palavra democracia a uma página do jornal. É o jornal ajudando a construir a democracia. Verdade. Mas não é só o jornal. É a imprensa. É o povo. Somos nós. Outra verdade.

E logo que a palavra fica pronta, um ‘DEMOCRACIA’ imenso no vídeo, há a lembrança do velho hino. Talvez aqui esteja a maior emoção desta peça. Mais uma verdade. Porque é hino. É apelo. É esperança. É desejo. É sonho. O sonho de que a democracia realmente abra suas asas (ou páginas) sobre nós.

E fica como se o comercial falasse por nós. Por mim. Por você. Por todos os que sonham assim.

Então, ao ver o comercial ali, ‘falando’ tão simplesmente por você, a emoção toma conta do coração da gente e nos faz ficar com vontade de aplaudi-lo, de bater palmas a cada vez que o vemos.

Porque ele diz aquilo que você gostaria de dizer e parece sentir o que você anda sentindo ultimamente (…).

Talvez a grande e principal verdade da mensagem do JB esteja na impossibilidade de separá-la do momento brasileiro. Quer dizer, é uma mensagem feita para vender o jornal. Claro. Mas não sei porque, não sei se pela própria fé de quem o criou, ela extrapola a sua finalidade mais evidente e vai direto ao encontro da esperança que nasce subitamente em cada espectador. E aí vira uma coisa só. A mensagem. Você. O país. A esperança. O jornal. A democracia. Todos em perfeita simbiose de emoção e fé.

Taí um comercial feito por um jornal, mas um comercial feito também um pouquinho por você. Não é pra emocionar?

Um grande parabéns ao Jornal do Brasil pela sensibilidade e pela beleza incomum de sua mensagem. De verdade! Que a democracia realmente abra suas páginas sobre nós. Nós bem merecemos!”.

É assim que me lembro, quase 30 anos depois, do festival que completou 60 anos.

E se escrevo sobre o meu primeiro Leão, não é para encher a minha bola. Nem para encher a bola da Contemporânea – e muito menos do Festival de Cannes, que não precisa disto.

Mas, como acho que já deve estar mais do que claro, escrevo para, isto sim, encher a bola da nossa jovem Democracia que, quase 30 anos depois, volta a ocupar as ruas e avenidas deste país, com seu grito forte e atuante. Escrevo para encher a bola da imprensa livre, que noticia, acompanha, critica, avalia, aplaude e luta permanentemente pela liberdade de opinião e expressão. Escrevo, claro, para celebrar as redes sociais que democraticamente abrem novos e vigorosos caminhos de comunicação, muitos ainda insuspeitados.

Escrevo, finalmente, para encher a bola da profissão que escolhi, profissão que reúne uma das maiores concentrações de talento, competência e profissionalismo deste país – e que conquistou, em 60 anos de festival, e acaba de confirmar neste ano, uma posição de liderança e respeito indiscutíveis no mercado mundial.

Uma profissão que, além de ajudar a garantir a existência de uma imprensa livre e independente, promovendo e estimulando a divulgação e consequente circulação de riquezas em todo o país, através da venda de produtos e serviços, pode proporcionar momentos de intensa participação social, solidariedade e grandeza.

Como este que eu pude viver, com muita emoção, em meu primeiro e inesquecível Festival de Cannes.

Ah, antes que o entusiasmo me faça esquecer: no ano seguinte, a Contemporânea inscreveu não um, mas dois comerciais. E um deles ganhou um Leão. Cinquenta por cento de aproveitamento. Mas isso já é outra história, que continuou por muitos anos num festival que não é mais aquele.

*sócio da Contemporânea

Da Redação: O texto acima foi escrito no final do último mês de junho, antes da ocorrência de infiltrações estranhas às manifestações organizadas em todo o Brasil. Ressaltando abominar os atos de vandalismo que surgiram depois, o autor decidiu preservar o texto original, afirmando acreditar que “a democracia será sempre mais forte do que qualquer tentativa de interromper sua marcha, enfraquecê-la ou desvirtuar seu sentido histórico, valor e grandeza”.