A brasileira Marie Calfat Nascimento descobriu um tumor cerebral aos 15 anos. Mudou-se para Nova York com a família e lá foi operada por médicos do hospital Lenox Hill, tema de documentário lançado pela Netflix em 2020 com episódios gravados durante a pandemia da Covid-19.
Mas contar histórias de luta pela vida precede aos streamings. Vem desde um dos maiores sucessos da televisão, a série ER – conhecida no Brasil como Plantão Médico -, que teve 15 temporadas exibidas pela Rede Globo e SBT entre 1994 e 2009, inaugurando o jeito de mostrar as emergências dos hospitais na mídia.
O pronto-socorro do fictício County General Hospital de Chicago abriu caminho para outras tramas do gênero, como Grey’s Anatomy nos anos 2000 e, mais recentemente, produções como The Good Doctor, da Sony; Chicago Med e Unidade Básica, da Universal TV; e O Hospital, do Grupo Record, que relata casos reais do Hospital Moriah, em São Paulo (SP).
Se a arte imita a vida, na mídia está o meio para levar reflexões que vão de sofrimento, dor e morte à esperança da cura. Longe das telas, a responsabilidade na comunicação é ainda mais vital. “Todo o conteúdo precisa ser muito bem apurado, com base científica, exatidão e clareza. A confidencialidade e a segurança de dados são duas regras inabaláveis”, crava Débora Pratali, diretora de comunicação da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein.
Efeito colateral
A busca é por referência em qualidade assistencial. “Saúde não é varejo, não posso chamar alguém para vir fazer uma cirurgia. É muito mais difícil criar uma estratégia para a área de saúde do que em outros segmentos”, contextualiza Felipe Kotait Borba, diretor-executivo de mercado da Hospital Care.
Com 10 hospitais, 20 clínicas e centros médicos distribuídos pelas cidades de Campinas, Sorocaba, São José do Rio Preto e Ribeirão Preto – todas em São Paulo -, além de Curitiba (PR) e Florianópolis (SC), a holding registrou receita de R$ 1 bilhão em 2020, ante os R$ 250 milhões obtidos no ano de sua criação, em 2017.
Rafael Werneck Sother, gerente nacional de comunicação e marketing da Rede D’Or São Luiz, reforça o desafio travado em meio aos limites éticos que devem ser observados pelos players do segmento de hospitais. “Ninguém deseja se internar num hospital como alguém deseja um celular novo. Cabe a nós mostrar que, em caso de necessidade, estamos prontos, que temos os melhores médicos e equipamentos”, explica.
Criatividade também garante a saúde da marca. “No fim de 2020, lançamos uma campanha de branded content com uma música gravada pelo Nando Reis e Ana Vilela em homenagem a todos os profissionais de saúde”, lembra Sother.
Com mais de dez milhões de visualizações, o videoclipe de Laços – composta por Gabriel Moura – traz imagens filmadas nos hospitais de campanha e em unidades da Rede D’Or em projeto criado pela Musickeria com distribuição digital da ONErpm.
Ciência na veia
Encontrar o caminho da popularização da ciência é uma das peculiaridades do marketing hospitalar na análise de Denise Lourenço, coordenadora-geral dos programas de MBA e docente no MBA em marketing, growth e data driven da Trevisan Escola de Negócios. Essencial para o exercício da cidadania e da democracia, o acesso à informação sobre ciência traz avanços comerciais e estratégicos. “Mais de 70% da população brasileira tem interesse em ciência e tecnologia”, avisa a especialista em divulgação científica.
Já o professor associado de marketing da Fundação Dom Cabral (FDC), Fred Albuquerque, frisa que bom senso, autocrítica e profissionalismo são fundamentais para que as instituições hospitalares “pautem o seu futuro na comunicação se colocando no lugar do outro”.
Empatia é o destaque na estratégia do HCor. O hospital, localizado no bairro do Paraíso, região Sul da cidade de São Paulo, acaba de reposicionar a sua marca com projeto desenvolvido pela Future Brand, que explora o conceito Boas ondas para materializar o propósito da instituição de fazer o bem às pessoas.
A virada da marca aconteceu em julho, com o rebranding estampado na home page, redes sociais, fachada, uniformes, papelaria e demais pontos de contato da instituição com pacientes, médicos e a comunidade. A campanha entra no ar nesta segunda-feira (30) com filme para TV, além de peças de imobiliário urbano, rádio e plataformas digitais, que trazem a assinatura HCor que você sente, criada pela agência Every. O investimento totaliza R$ 5,5 milhões.
Diagnóstico digital
“Queremos reverberar o bem que fazemos para as pessoas e contribuir para o desenvolvimento da saúde com estudos e capacitação para médicos em todo o país”, conta Marcos Riva, gerente-executivo de marketing e comunicação do HCor, que tem como mantenedora a Associação Beneficente Síria. Fundada por mulheres que vieram ao Brasil para fugir da guerra, a entidade deixou em projetos filantrópicos iniciados há mais de cem anos o legado de cuidado que hoje dá vida ao posicionamento do HCor.
Nessa história de 45 anos, o meio digital ganha importância justamente no momento em que ter a curadoria de conteúdo de um hospital garante a credibilidade esperada para se transmitir informações de saúde. Em plena pandemia da Covid-19, os hospitais se tornaram porta-vozes equipados com tecnologia capaz de ajudá-los na própria gestão. “O nosso desafio não é gerar demanda e sim saber como participar do repertório da pessoa, do seu dia a dia, levando informações confiáveis”, atesta Riva.
Com cem mil inscritos no YouTube, o HCor acaba de alcançar 12,2 milhões de visualizações, consolidando a plataforma como uma rede estratégica com foco em negócio, conversão, awareness, cobertura e visibilidade. Já a média de novos usuários do site aumentou 56% em 2020.
No total, foram mais de 3,3 milhões de visitantes impactados por ações como o Dia Mundial do Coração, além de iniciativas realizadas em parceria com Globo.com e Minha Vida. Em sua primeira live feita no LinkedIn sobre saúde e trabalho, o hospital reuniu mais de 900 usuários em tempo real.
Dose extra de segurança
Ao aplacar a insegurança e a ansiedade durante a pandemia, também o Hospital Sírio-Libanês reafirmou o propósito da instituição de informar com base na ciência. “Fomentar o conhecimento foi a melhor forma de atender à sociedade e combater a desinformação”, diz Christian Tudesco, superintendente de marketing corporativo do Hospital Sírio-Libanês.
Em parceria com a plataforma de educação corporativa HSM, foram produzidos podcasts com 23 episódios e 9.250 reproduções, além de sete webinars com 9.898 views. As 26 aulas gratuitas do Sírio-Libanês Webtalks para profissionais de saúde atraíram 82 mil visualizações de 17,8 mil inscritos no projeto promovido pelo Sírio-Libanês Ensino e Pesquisa, que abrange ainda cursos de educação a distância sobre Covid-19, hoje com 220 mil inscritos.
Com a campanha Não Pare de se Cuidar, a instituição somou 5,4 milhões de visualizações, enquanto os vídeos informativos Sírio-Libanês Informa Covid-19 tiveram mais de 240 mil views. Entre Instagram, LinkedIn, Facebook e YouTube são cerca de 1,2 milhão de seguidores.
Em diversas ações, o hospital tirou dúvidas sobre o coronavírus, falou sobre quarentena e retomada, alertou sobre a importância de não se interromper tratamentos, produziu cartilhas sobre comportamento seguro, exercícios físicos em casa, saúde mental e vacinação.
Criou ainda a série A descoberta de Pedro sobre o coronavírus, para crianças, além de manuais liderados por médicos sobre fluxos seguros. Também foram feitas campanhas internas com foco em proteção. “Nunca foi tão importante fazer a gestão de reputação para aproximar a marca das pessoas”, defende Tudesco, que é atendido pela InPress. O executivo entende que o atendimento hospitalar é apenas um dos negócios. “O nosso diferencial é ser uma plataforma de conteúdo confiável”, ratifica.
Prevenir é o melhor remédio
A Dasa, que possui 250 mil médicos parceiros, 15 hospitais referências e mais de 59 marcas entre medicina diagnóstica e hospitais distribuídas em mais de 900 unidades no Brasil, fortalece a sua credibilidade por meio do relançamento de sua marca, realizada no último mês de abril.
Agora, o plano é migrar da doença para prevenção. A rede atendida pela CP+B Brasil desde janeiro deste ano, lançou uma campanha integrada – com TV, peças impressas e digital – para mostrar que Dasa é para toda a vida. “Mudamos também o nosso logo, que passou a ser um símbolo integrado em movimento de expansão: uma linha contínua, que une e apresenta a Dasa como um ecossistema de saúde”, esclarece Emerson Gasparetto, diretor-geral de negócios hospitalares e oncologia da empresa.
Como parte desta mudança, a jornada de saúde do paciente foi organizada considerando cuidado, informação, tecnologia e ciência. A postura diante da pandemia já dava pistas desse novo momento da marca, que “soube compreender a nova realidade e passou a acolher ainda melhor tanto o paciente quanto o time médico”, reconhece Gasparetto. De acordo com o executivo, tirar dúvidas por telefone e telemedicina se tornou essencial para o tratamento.
Raio X
“Serviços que antes eram executados com papel e caneta passaram a ser complementados por aplicativos inteligentes, inclusive de autoatendimento. Isso também abarcou a comunicação, inclusive na forma como os estabelecimentos passaram a abordar os pacientes nas redes sociais”, confirma Adelvânio Francisco Morato, presidente da Federação Brasileira dos Hospitais (FBH).
Mas a realidade da rede hospitalar brasileira é marcada por disparidades. Dos 4,2 mil hospitais existentes hoje na rede privada do país, cerca de 70% – ou mais de três mil – são compostos por unidades de pequeno e médio porte (com até 100 leitos), das quais mais de 50% estão situadas em cidades do interior.
“São hospitais que há mais de uma década sobrevivem a uma forte crise econômica, escancarada por uma política tributária sufocante, que não têm condições sequer de investir em melhores acomodações a seus pacientes, que dirá em incorporação tecnológica”, adverte Morato.
Hoje, os esforços da FBH estão centrados em garantir a sobrevida dessas instituições. Nos últimos 10 anos, 600 hospitais tiveram suas portas fechadas. “Se nada for feito, para o próximo ano poderemos ter um quantitativo ainda mais preocupante e, com isso, desemprego e desassistência em pequenos municípios do país”, alerta Morato.
Em 2020, mais de um milhão de procedimentos ficaram represados em decorrência do cancelamento de consultas eletivas. A expectativa é zerar as filas contando com mais estabelecimentos e profissionais. “Acreditamos que uma parceria entre os setores público e privado poderá dar uma resposta à altura”, sugere Morato.
Mesmo assim, o executivo reconhece que “o setor de saúde também tem se modernizado e incorporado as estratégias de marketing, sobretudo nas redes sociais, para atender as exigências de uma clientela que tem se refinado mais em suas exigências”, pondera. De acordo com o especialista, a presença dos estabelecimentos nas redes sociais e a sua associação a eventos passaram a preencher uma lacuna na relação do setor com quem procura atendimento médico em um momento difícil da vida.
Da voz que vem das redes, veio a estratégia do Hospital do GRAACC para alertar sobre o câncer infantojuvenil. A Alice, de apenas 2 anos – que ficou famosa ao participar de uma ação do Itaú -, repete agora as palavras resiliência, otimismo e perseverança em vídeo que fala sobre diagnosticado precoce. A nova embaixadora da marca já tem até post para os seus mais de dois milhões de seguidores.
Causa e efeito
Denise Lourenço, da Trevisan, aumenta o coro. “A telemedicina talvez seja a maior mudança para a área de saúde. Houve aumento no tráfego de usuários por busca orgânica, direta em sites de hospitais, observamos a reestruturação dos sites e as redes sociais passaram a entregar conteúdo de interesse público”, corrobora.
A investida da Dasa demonstra essas novas frentes de atendimento. A empresa acaba de fechar uma parceria com a Oliver para montar uma house agency responsável pela comunicação dirigida da plataforma Nav, que nasce com agendamento, consulta a resultados de exames e serviços de telemedicina. Rapidez para entregas em redes sociais, performance e e-mail marketing estão no escopo do trabalho, que será conduzido pelo content team leader Beto Rando.
A empresa intensificou ainda o serviço de coleta domiciliar com isenção da taxa de atendimento para pacientes com mais de 60 anos e alocou os times administrativo, financeiro, jurídico e de marketing em esquema de home office.
“A pandemia fez com que os hospitais precisassem reinventar processos, procedimentos, ambientes e a forma de convivência com pacientes e equipes. Humanização, cuidado, segurança e acolhimento, que já eram bandeiras da Dasa, se tornaram ainda mais fundamentais na nossa operação”, detalha Gasparetto.
Vitalidade
No Hospital Albert Einstein, de onde veio o diagnóstico do primeiro caso de Covid-19 da América Latina – no dia 25 de fevereiro de 2020 -, manuais, infográficos e vídeos foram disseminados no Facebook, Instagram e LinkedIn em formatos de fácil compartilhamento pelo WhatsApp, e respostas para mais de 200 perguntas baseadas nas buscas do Google ajudaram a orientar a sociedade.
Lives com especialistas também permitiram o esclarecimento de dúvidas estimulando a prevenção. O conteúdo foi centralizado no blog Vida Saudável, criado em dezembro de 2019. “Passamos de uma média de cem mil visitas ao mês nos primeiros dois meses do Vida para 360 mil visitas ao mês em 2020”, revela Débora Pratali. No mesmo período, o site institucional recebeu uma média mensal de 767 mil visitas e o canal do Einstein no YouTube teve 7,2 milhões de visualizações.
“A pandemia certamente acelerou etapas. Observar essa mudança e, principalmente, acompanhar como o Einstein está fazendo é a certeza de que o ‘agora’ é digital”, comenta Felipe Oda, especialista em marketing digital do Hospital Israelita Albert Einstein, que prepara a sua campanha dos 50 anos.
A Rede D’Or mobilizou o seu corpo clínico para a produção de vídeos e divulgou iniciativas como a abertura e operação de dois hospitais de campanha no Rio de Janeiro, ativação de leitos, além de doações que totalizaram R$ 260 milhões. “O objetivo da mensagem transmitida era não só mostrar o quanto uma empresa do tamanho da Rede D’Or devolve à sociedade onde ela está inserida como também estimular empresas parceiras a fazerem o mesmo”, propõe Sother.
Na holding Hospital Care, a decisão inicial foi suspender campanhas e montar um comitê de crise que trabalhou em boletins diários e hotsites esclarecendo os fluxos hospitalares. “Depois, decidimos trazer uma comunicação um pouco mais leve, mostrando a alta dos pacientes e esclarecendo que a doença tem cura”, relembra Felipe Kotait Borba.
“É compreensível que a preocupação em período de pandemia seja em aumentar a efetividade da comunicação interna para reduzir erros, permitindo que os processos fluam de modo mais organizado e seguro”, avalia Denise Lourenço, da Trevisan.
Exame
Apesar da incorporação do meio digital, a comunicação dos hospitais ainda precisa entender a “real importância do papel da comunicação com pacientes, colaboradores, imprensa, mídia em geral, familiares, enfim, com uma gama enorme de envolvidos no negócio”, contrapõe Fred Albuquerque, da Fundação Dom Cabral.
O professor entende que o segmento hospitalar desenvolveu o seu aprendizado na “dor”. “Digo isso porque a pandemia não acabou. Estamos em uma fase um pouco mais tranquila, mas ainda sofremos com o caos. Entendo que o segmento tem muito a repensar e a aprender”, acredita.
De forma abrupta ou determinada pelas contingências, as medidas foram tomadas, mas “nem todos ainda alcançaram uma maturidade de discussão ou formularam novas diretrizes”, pontua. Segundo Albuquerque, o segmento tem sido obrigado a ser mais ágil nas informações. Assertividade, empatia, solidariedade e acolhimento são os aprendizados. “Acredito que esta é uma área que também está se reinventando sob o prisma dos impactos da pandemia”, concorda Morato, da FBH.
Mais conscientes da importância da comunicação, os hospitais seguem revendo estratégias de comunicação, repensando o papel do marketing e reorientando diretrizes organizacionais a fim de manter uma estrutura saudável para os negócios e aliada das pessoas.