Vida agitada, agenda cheia, filmes, compromissos, pessoas interessantes, compromissos com pessoas interessantes, apresentações divertidas, alguns sucessos, outros nem tanto, ruídos, referências, mais pessoas interessantes, internet rápida, smartphone de última geração, estreias, carro conectado, bluetooth, wi-fi em todos os lugares, eixo Rio-São Paulo, celebridades à volta, selfies, Instagram sempre atualizado, WhatsApp com vários grupos, bons vinhos, pessoas geniais falando coisas geniais, mais celebridades à volta, enfim, tudo aquilo que eu poderia desejar para me sentir bem inspirado, não é mesmo? Só que não!

Ué! Por que não? Porque tudo isso só me afasta, ainda mais, daquilo que realmente me inspira: o silêncio. Para mim, não existe nada mais precioso e inspirador que me encontrar nesse estado de alma cada vez mais raro. Pois só nesse estado, quase meditativo, consigo me encontrar com o que realmente sou, sem máscaras ou fantasias. O silêncio me coloca fora dos acontecimentos e me instala num ponto de vista privilegiado.

Desse lugar eu consigo refletir, me aprovar, me corrigir, me emocionar, chorar sinceramente, me arrepender, enxergar a maldade naqueles que me adulam e a verdade naqueles que me criticam. Só assim, sem falar nem ouvir nada, no mais puro e aterrador silêncio, eu consigo sentir saudades puras (sim, elas ainda existem), livres de qualquer outro interesse, consigo ter desejos sinceros, honestos e elegantes, desejos que estão mais conectados com a minha alma do que com os meus sentidos.

Consigo até mesmo brincar de exercitar o poder da mente, quando me coloco a enviar algum pensamento ou sentimento amoroso em relação a alguém e em poucos segundos este alguém me liga ou escreve, dizendo que, do nada, se lembrou de mim. Em silêncio, consigo, mesmo a distância, sentir o que os meus filhos estão precisando, me antecipar aos seus problemas, consigo me sentir em São Paulo mesmo estando no Rio e vice-versa. Mas como tudo isso se conecta com o meu trabalho? Eu tenho, como diretor de filmes, um foco muito voltado para a direção de atores. Tudo o que aprendi de mais precioso nesse universo veio da minha relação com o silêncio, porque ele me conecta de forma mais direta com aquilo que inspira todas as estórias: a própria vida. Como comandar os tipos que vou dirigir, se, na minha vida pessoal, eu não os observá-los silenciosamente?

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Como adivinhar a intenção daquela desatenta caixa de banco, que acha que o cliente é apenas um intervalo entre um post e outro, senão através da observação silenciosa? Como entender e apreender os gestos daquele mal-humorado funcionário público que se garante na estabilidade do emprego vitalício, se você estiver distraído postando fotinhos no Instagram? Como repetir para um ator a atitude maliciosa que você só encontra naquele seu cunhadinho filho da puta, que adora os teus vinhos franceses, mas só te serve os argentinos, se você não o estivesse espiando de longe e com a alma em sentinela? Como enxergar a alma conservadora daquela menina moderninha, se você só ficar olhando para os seus óculos coloridos e suas roupas de brechó, em vez de espreitar as suas reações involuntárias?

Não existe outra maneira de encontrar verdade numa estória, senão através dos olhos, dos gestos, das intenções e dos movimentos do ator. E como aprender tudo isso senão através do silêncio? Do próprio silêncio. Você pode gastar todo o tempo do mundo decorando o seu filme com todas as gracinhas, efeitos e firulas que o mundo do cinema dispõe, mas se houver um único ator em cena, será nele que o espectador colocará toda a sua atenção; de cada palavra ou movimento daquele ator, o espectador esperará uma conexão, uma identificação; mesmo que aquele ator fique parado durante todo o tempo no cantinho do quadro, o nosso espectador passará o filme inteiro à espera de alguma ação dele, ansiará por algum gesto de cumplicidade; depositará nele todas as suas esperanças.

A maior prova disso é que o teatro existe desde a Idade Média, sobreviveu a todas as mídias. Que me desculpem os meus amigos cenógrafos, mas, até onde eu saiba, desde aquela época, nunca ninguém saiu de casa para ver cenário. E olha que gregos e romanos eram muito bons nisso. Sacanagens à parte, hoje o maior exercício é conseguir ficar em silêncio mesmo estando acompanhado. Mas até que nesse aspecto a tecnologia tem me ajudado: enquanto as pessoas abaixam a cabeça para olhar o celular, vou dando as minhas espiadinhas silenciosas. Sshhh!

Clovis Mello é diretor do longa Ninguém Ama Ninguém (Por Mais de Dois Anos), é sócio e diretor de cena da Cine