“Você conhece alguém para indicar?” A pergunta rotineira no ambiente corporativo acaba sendo uma régua prejudicial aos negócios. Seja por pressa ou comodidade, buscar novos colegas entre os mesmos colegas muitas vezes perpetua padrões, impossibilita a experimentação e concentra visões semelhantes nas mesmas caixinhas.
O problema afeta todos que buscam emprego e às vezes nem ficam sabendo de determinadas vagas, mas é muito mais grave em grupos que historicamente lutam para ter oportunidades mais justas e condições iguais de crescer profissionalmente, como as mulheres. E o desafio é ainda maior para profissionais negras.
Não faltam pesquisas, como a Diversity Wins, da McKinsey (2020), e vozes da indústria da comunicação e dos negócios reverberando que empresas com diversidade performam melhor. É nesse cenário que a cada ano mais iniciativas lutam para equiparar espaços, e encontram mais empresas tentando se equilibrar.
No entanto, mesmo com exemplos no Brasil, como o recém-lançado Círculo de Criativas Brasil, a cultura da indicação ainda é um grande entrave para elas. Então como furar a bolha? Como romper o vício de preencher vagas apenas com profissionais indicados por amigos, e gerar oportunidade e diversidade em todos os cargos criativos?
Passando principalmente pela conscientização das lideranças, há muitas possibilidades, como contratação às cegas, projetos internos de equidade, processos seletivos, ajuda de coletivos e serviços que permitem as mais diversas buscas. Dedicada ao mercado criativo e de comunicação, a More Grls expandiu as opções de busca acrescentando raça ao cadastro em sua plataforma.
Hoje são mais de quatro mil profissionais inscritas: redatoras (16,52%); diretoras de arte (10,76%); designers (16,34%); criativas em cargos de liderança como ECD e CCO (0,62%); criativas de cargos mais júnior como estagiária, assistente e plena (31,46%); e freelancers (24,3%). Até o fechamento desta edição, 2,2% das profissionais inscritas são negras. Mas o número deve ser maior porque essa fatia reflete o mercado de criatividade.
“A More Grls ainda está em fase de conscientização das criativas inscritas para completar/atualizar seus cadastros. A opção não existia na versão anterior, com isso, muitas das profissionais presentes na plataforma ainda estão dentro deste processo de atualização, o que interfere diretamente no número”, explicam. Agora, líderes e empresas podem procurar diretamente por profissionais negras usando palavras-chave. “O centro da inteligência é a busca aliada ao cadastro”, afirma Camila.
Outra novidade da nova versão é a opção de Anúncio de Vagas, onde a agência anuncia a posição e o perfil que está buscando. Além disso, a More Grls está oferecendo o serviço de headhunting para liderança criativa com critérios mais amplos que considerem além das instituições de ensino e experiências mais comuns no mercado. “A metodologia tenta fugir de alguns skills. Não nos apegamos somente a prêmios, passagens por marcas e empresas famosas, mas também à capacidade de liderança etc. Mapeamos de maneira diferente”, detalha Florence.
Para elas, a plataforma é apenas uma das ferramentas que trabalham para quebrar esse ciclo. A outra via é das lideranças, que têm papel decisivo de realmente buscarem colaboradas além de seu entorno. “Quando você indica, acaba inconscientemente se atendo ao seu núcleo imediato de pessoas e mais parecidas com a gente. E falando de um mercado onde as pessoas com poder de decisão são homens, brancos, a tendência de indicar outro homem branco é enorme. E pensando em diversidade, não dá para ir tapando buraco, tem de estruturar, ter como meta”, diz Camila. “Acontece em muitos mercados, mas no de comunicação é muito evidente que existe até uma certa preguiça de ir atrás de outros buscadores. Há diversas justificativas como a necessidade de preencher a vaga ‘para ontem’. Com isso acaba trazendo alguém sem se aprofundar no perfil do candidato. A cultura de indicação também acaba deixando um pouco informal o processo seletivo”, acrescenta Florence.
FURANDO A BOLHA
Os quadros internos das agências ainda não refletem a realidade do país (mais da metade das pessoas se declaram negras no Brasil), mas aos poucos já é possível encontrar mais mulheres negras ocupando espaços. Por meio de processos seletivos e de projetos estruturados, elas mostram que a oportunidade faz, sim, toda a diferença. E mais: evidenciam o papel do RH e de serem avaliadas e acolhidas por mulheres.
Adriana Oliveira, community manager na Ogilvy, se candidatou a uma vaga pelo LinkedIn e recebeu contato do RH, mas a contratação acabou sendo para outra função, gerando um exemplo positivo para ela. “Meu perfil não era compatível com as necessidades da vaga e o RH me retornou informando isso, mas que deixaria meu currículo no radar para outras oportunidades. E foi o que aconteceu dias depois. A área entrou em contato novamente comigo, fiz entrevista com a gestora e passei. Foi muito legal saber que realmente o RH teve essa atenção e quando surgiu outra oportunidade considerou o meu perfil para aquela oportunidade. Apesar de a pandemia ter limitado esse processo de integração à equipe, me senti muito bem recebida e a sensação foi de que a agência estava feliz com a nossa chegada ao time. Outro ponto que me fez me sentir mais em casa é que eu já sabia que a agência tinha uma quantidade de negros maior que outras agências e essa questão era considerada pelo time”, afirma.
Crislaine Almeida, executiva de contas na AlmapBBDO, está na agência há três meses e foi procurada pelo RH em seu LinkedIn.
“Confesso que não passava pela minha cabeça trabalhar em uma agência como a Almap, uma vez que não conhecia pessoas aqui dentro para me ajudar. Passei por entrevistas com o RH e com as pessoas do grupo de contas do qual faria parte. Participei de um processo no qual percebi que a questão da diversidade dos candidatos era relevante e levada a sério”, diz.
Amanda Porto, community manager na Africa, também entrou por processo seletivo. No Indique Uma Preta, ela conheceu a Kendra, que havia trabalhado na Africa e comentou sobre um processo aberto e decidiu participar.
“Eu me inscrevi, realizei os testes e conversei com o time de RH, que me explicou tudo sobre a vaga e as condições de trabalho. Eles me direcionaram para conversar com a gestora da área, a Carol Patrocínio. Contei um pouco da minha trajetória, da minha última experiência, conversamos e alinhamos expectativas. Ela valorizou minha história e acreditou no meu potencial. Foi muito bom poder conversar com mulheres nas duas fases”, conta.
O acolhimento é destacado por Julia Dantas, redatora da área de conteúdo da Publicis. Ela se candidatou a uma vaga, recebeu contato do time de Talent Acquisition para uma primeira entrevista e na segunda fase conversou com a gestora da área. “Foi um papo muito gostoso, em que me senti muito acolhida. A integração também foi ótima”, diz.
A supervisora de conteúdo Ana Aguiar, também da Publicis, ressalta que foi acolhida desde o primeiro momento. “Tive uma outra entrevista com a gerente, Karoline Canin, que também foi um amor além de muito profissional. Nunca trabalhei em uma agência tão organizada, que se preocupa tanto com a integração das pessoas no time. Sabemos que nesse processo de agências e empresas estarem contratando pessoas pretas, muitas delas não possuem estrutura para isso e acabam falhando, não foi o que senti na Publicis”, diz.
A abertura para o diferente foi decisiva para Ilma Pinto, cabo-verdiana que vive em São Paulo há sete anos e atua como analista de planejamento na FCB Brasil há um ano. Na época, ela foi entrevistada junto com o RH, uma gerente e um diretor.
“Falamos sobre um pouco de tudo sobre minha história de vida, minhas experiências no trabalho, sobre a agência, as pessoas, os clientes que atendem e as atividades que ia fazer na área. Eu me senti muito acolhida e especial quando entrei. Uma semana depois veio a pandemia e todos tiveram de trabalhar de suas casas. E eu achava que seria muito difícil a minha integração na agência e foi o contrário, fui muito bem acolhida e recebida pelo time todo. Além disso, a FCB Brasil conta com o Comitê da Diversidade e Inclusão, em que me acolheram desde o primeiro dia e eu faço parte do Grupo de Profissionais Pretos, onde estamos sempre discutindo como tornar a agência ainda mais inclusiva e diversa”, afirma.
QUANDO O ÂNGULO VIRA TRAVE
Quando questionadas se ao longo da carreira perderam vagas para outra profissional escolhida por indicação, a maioria respondeu que sim e relata impactos de saberem que nem foram avaliadas ou não entraram em um processo de seleção, porque já havia outra pessoa cotada para o cargo.
“Lembro de me sentir muito mal porque, mesmo sabendo que a outra pessoa havia sido indicada, passei a me questionar se não era boa o suficiente. Mexe muito com nossa autoestima intelectual. Nós, mulheres negras, nos esforçamos duplamente por tudo o que queremos. Muitas vezes não importa o quanto façamos, estudamos ou nos esforçamos porque outra pessoa, na grande maioria das vezes branca, vinda de uma faculdade renomada e com menos expertise vai ocupar aquele lugar por ter sido indicada”, diz Amanda, da Africa.
O pouco tempo no mercado paulista e a formação em universidades que não estão nas mais lembradas pelas empresas também deixou essa sensação em Adriana, da Ogilvy. “É desanimador. É como se todo o seu esforço de estudar e se preparar para aquela vaga não significasse nada, já que não é esse o critério adotado”, comenta. “A gente se sente inferiorizado. Isso desestimula um pouco, mas acredito que tenha melhorado”, reflete Ana, da Publicis. Já Marina, da David, acredita que não, mas por uma razão bem específica. “Geralmente as indicações acontecem antes de as vagas serem divulgadas publicamente. Então, se aconteceu, não fiquei sabendo”, diz.
Juliana Caetano, assistente de BI na FCB Brasil, entrou através do programa FCB Brains, um processo seletivo focado em estágio com etapas a distância (Fit Cultural, Inglês, Raciocínio Lógico etc.) e presencial (entrevista em grupo e individual).
Após contratação, recebeu aulas semanais sobre cada departamento na empresa; mentoria e conteúdo do comitê de diversidade.
Ela conta que, além de sentir que perdeu oportunidades para pessoas indicadas, passou por outra questão delicada. “Já fui indicada e sinto que não fui selecionada por ser uma mulher negra. Tenho boa retórica, passei por uma universidade pública, tinha experiência profissional e a indicação de um profissional de alta hierarquia. Ainda assim, não consegui a vaga”, recorda.
Por esses e outros desafios, todas acreditam que a bolha precisa ser furada. Para Amanda, da Africa, as indicações são sempre feitas por pessoas que já estão há algum tempo no mercado ou são influentes, geralmente pessoas brancas, homens e mulheres que reproduzem os mesmos ambientes e relações de suas faculdades ou trabalhos anteriores. “As vagas nunca chegam para outras pessoas que são igualmente capacitadas, mas que estão em outros ambientes como faculdades mais populares, ou são negras, indígenas e/ou LGBTQIA+ e não fazem parte dos ciclos das pessoas que costumam se indicar. É importante furar isso para que outras visões e pessoas sejam contempladas, formando times heterogêneos. É necessário que as empresas criem ambientes que tragam representação, equidade de gênero e raça. Só assim conseguiremos furar essa parede”, diz.
Ana, da Publicis, avalia que a situação reflete a sociedade em classismo, racismo e machismo. “Inclusive, não só quebrar essa bolha de indicações, como também a bolha do local onde a pessoa mora, a bolha das faculdades. Muitas agências só contratam pessoas que moram próximas ao Centro e vieram da ESPM ou outras faculdades que são elitizadas. Consegui uma Bolsa pelo Prouni na Anhembi Morumbi, que, apesar de ser elitizada, ainda não está no topo das faculdades valorizadas por algumas agências, mesmo assim passei por isso. Acho importantíssimo quebrar esse ciclo para abrir mais oportunidades para pessoas que vêm de lugares como eu vim”, afirma.
Para Juliana, da FCB, a bolha não só é real como é comprovada por estatísticas. “A pesquisa A Presença do Negro na Publicidade, por exemplo, efetuada por Danila Dourado, comprovava que apenas 0,74% dos cargos
de alta chefia em agências de publicidade são compostos por pessoas negras e, de todos os profissionais de agências, apenas 3,5% são negros. Se 54% da população brasileira é negra, segundo o IBGE, por que apenas 3,5% dela está em agências de publicidade?”, provoca.
A profissional resume em dois pontos a importância de acabar com o ciclo. “Primeiro, não ser conivente com a desigualdade de gênero, raça e classe. Dar oportunidade de emprego para as minorias é sobre dar condições para a sua existência. E segundo, agências de publicidade são sobre criatividade e repertório. Qual o benefício econômico e social por trás da indicação de pessoas que estão no mesmo círculo? Pessoas diferentes questionam e trazem perspectivas novas”, acrescenta.
Na avaliação de Marina, da David, isso é ainda mais visível na criação. “Muitos homens que preferem trabalhar com os amigos que possuem o mesmo perfil que eles, o que acaba dificultando a entrada de mulheres nos times criativos”, comenta.
Apesar do cenário longe do ideal, Ilma, da FCB, afirma que a bolha começa a ser furada com a ajuda de projetos, plataformas e consultorias como EmpregueAfro, Indique uma Preta e Planilhas de Pretos, abrindo caminho para novas oportunidades. “Furar essa bolha é trazer mais equidade para a sociedade e torná-la mais justa. E as empresas e agencias só têm a ganhar quando se tem um ambiente diverso e inclusivo”, cita.
Crislaine, da Almap, concorda e observa que os gestores das empresas e agências estão começando a mudar seu mindset sobre recrutamento e seleção. “Mesmo quando há indicações para uma determinada vaga, outras pessoas começam a ser consideradas para que de fato haja um processo seletivo. Quebrar silos e reduzir viés na seleção é um passo importante. Todos os fatores conscientes e, principalmente, inconscientes que podem levar uma pessoa a ser excluída de um processo seletivo por uma razão que não seja, de fato, relevante para a vaga”, afirma.