As lives foram, no início da pandemia, em março de 2020, a grande sensação. Até lives de vendas ganharam força, embora para o mundo dos negócios não chegava a ser exatamente uma novidade. O Shoptime, por exemplo, é um conhecido canal de vendas ao vivo do mercado brasileiro. Fora do país há inúmeros exemplos. Na China, dizem especialistas, a modalidade movimenta bilhões de dólares em vendas. 

No Brasil, marcas famosas como Americanas, Magazine Luiza e C&A, entre outras, adotaram a estratégia para estimular as vendas e deu certo, já que a mecânica é simples e funciona basicamente no ambiente online, que une streaming e e-commerce. Com o isolamento social, se estabeleceu o elo, ajudando nas vendas. Alguns apostam que o formato pode revolucionar a indústria do varejo, além de alterar a maneira como as pessoas compram.

Rodrigo Carvalho, da iD\TBWA (Divulgação)

Rodrigo Carvalho, diretor de inovação da iD\TBWA, fala que é difícil estimar quando o live commerce chegaria ao Brasil, caso não tivesse ocorrido a pandemia. Mas, afirma que se for considerado que ele reflete, em alguma medida, “a maturidade da cultura omnichannel, boa parte das empresas brasileiras teria ainda um longo caminho a percorrer”. A pandemia criou um contexto muito favorável à chegada do formato no Brasil. “O fechamento do comércio tradicional, o crescimento de vendas do e-commerce e, principalmente, o aumento no consumo de conteúdo nas plataformas digitais foram a base de tudo que catalisou esse processo. Mas, só quem pôde responder a esse chamado foram as empresas com alguma maturidade na gestão integrada de canais, além, é claro, da capacidade técnica e do fôlego financeiro para inovar”, argumenta.

Para ele, é crucial observar como a perspectiva de crise serviu de estímulo para que as marcas investissem e priorizassem uma inovação com esse formato. “Não fosse a ameaça de retração, talvez o e-commerce brasileiro levasse outros 25 anos para se fundir ao conteúdo de marca e à interação de vendas ao vivo dessa forma”, dispara.

Já Cassiano Scarambone, CEO da Take4Content, acredita que a pandemia tenha acelerado a implementação do live commerce no Brasil, mas não a sua chegada. “No período pré-pandemia, ele já era visto como uma tendência mundial e, ainda que de forma tímida, já tínhamos algumas iniciativas por aqui, como do Alibaba e outras marcas”, lembra.

Cassiano Scarambone, da Take4 Content (Divulgação)

Na opinião do diretor de inovação da iD\TBWA o novo canal de vendas se instalou no país e veio para durar. “O consumo de lives é um traço consolidado da cultura digital e está caminhando para se tornar o ‘consumo nas lives’”, prevê, acrescentando: “Em uma visão de negócios, o live commerce acompanha um movimento global iniciado há alguns anos, de integração dos ecossistemas de marketing, produtos e vendas, e deve encontrar espaço para crescer ainda na esteira da digitalização do varejo. Na outra ponta, o formato ataca um desafio bastante atual das marcas, que é o de construir consideração com a produção de conteúdo-proprietário”, analisa.

Segundo ele, o live commerce tem as bases necessárias para se manter em rota de crescimento, o que, no Brasil, estará condicionado à chegada do 5G e à ascensão dos pagamentos digitais. “A entrada de grandes hosts como Google (YouTube), Facebook (IGTV) e Amazon, que já trabalham em suas plataformas de venda ao vivo, devem garantir uma segunda onda ainda maior de adoção da modalidade, que hoje cresce, principalmente, com iniciativas proprietárias e hubs de streaming independentes”.

Adesão

Scarambone também afirma que a plataforma veio para ficar. Para ele, ela já funcionou e demonstrou resultados. “Além disso,  é viável. Então, se é viável e já temos resultados, não há motivos para que grandes empresas não resolvam fazer estes testes e validações, para seguir aderindo a este formato”, declara. Segundo o executivo, o que ainda não se pode dizer é quanto tempo as empresas vão demorar para se adequar e adicionar esse formato em suas possibilidades de vendas.

Rodrigo Carvalho fala que o live commerce tem sido importante para as marcas exercitarem a inovação e a diversificação de canais e formatos, e, sem dúvida, “teve uma contribuição indispensável na conquista de visibilidade e incremento de vendas, sobretudo em datas celebrativas do varejo”. “Ainda assim, acredito que o maior ganho das iniciativas é o da experimentação, da antecipação e preparação para um futuro em que o live commerce se tornará não uma alavanca de emergência, mas uma fonte de receita always on”, explica.

Ele comenta ainda que o varejo de moda foi de longe o carro-chefe do live commerce em 2020. Para ele, muito em função do perfil da indústria. “Riachuelo, Farm, Schutz, Arezzo, Renner e Chilli Beans, entre outras marcas, experimentaram e aplicaram o novo formato”. Carvalho destaca que nenhum outro segmento executou a proposta com tanta naturalidade e aderência. “A Dengo Chocolates, além de ser a pioneira no Brasil, merece destaque, pois soube sustentar a iniciativa criando de fato uma live store e não uma live única de vendas. A Claro, que inaugurou o formato no segmento de telecom, também teve um papel importante, porque trouxe para o mercado a iniciativa mais robusta, com programação diária e uma estratégia de conteúdo bastante sofisticada. Acredito que seja a iniciativa mais próxima do que os chineses reconhecem como live commerce. A Lojas Americanas, da B2W, também atingiu um bom nível de engajamento e aproveitamento em vendas”.

Carvalho não arrisca dizer quanto o segmento pode ter crescido no Brasil, “porque ainda é cedo para se criar uma visão histórica de crescimento, já que 2020 foi o primeiro ano com iniciativas expressivas no país”. “Mas se olharmos de forma contextual para a evolução do consumo de lives, da performance dos patrocínios e das vendas no e-commerce, teremos um ponto de vista otimista sobre esse primeiro ano. Ele apresenta dados do Google, por exemplo, que apontam que 71% dos brasileiros com acesso à internet disseram ter assistido a pelo menos uma live no primeiro semestre, enquanto 38% disseram ter visto seis ou mais delas e 24% viram mais de dez. “Segundo dados da Social Miner, as lives patrocinadas tiveram  taxa de clique 48% maior do que a média de outras campanhas. Já o faturamento do e-commerce cresceu 73,88% no acumulado do ano, segundo índice MCC-ENET”.

Lucas Daibert, sócio e diretor de planejamento da Binder, lembra que sua agência é parceira e curadora do grupo Brasil Varejo, que há mais de 20 anos leva executivos para a NRF, evento de varejo realizado anualmente em Nova York, cuja edição de 2021 foi realizada no formato online, o live commerce teve grande destaque. “Fato é que a pandemia acelerou muito este formato de venda: é uma forma de ter proximidade com o cliente, gerar experiência e proporcionar entretenimento, em um momento em que o acesso às lojas está bem mais restrito”.

Lucas Daibert, da Binder (Diulgação)

Segundo ele, essa é uma das realidades do varejo: no online, a compra costuma ser mais transacional, enquanto no físico seria mais inspiracional. “E o live commerce permite trazer um pouco de inspiração, de conteúdo, de diversão, de conversa, para uma compra que costuma ser bem mais objetiva. De certa forma, traz alguns elementos da experiência de loja para o meio eletrônico”. Na visão dele, os canais de vendas na TV já foram precursores há algumas décadas. “Seriam o avô e a avó do live commerce. A diferença é que, agora, além da conversa real time, que era muito limitada na TV, o conteúdo e a compra se dão de forma muito mais natural e fluida, sendo possível acompanharmos dados que não tínhamos antes para a tomada de decisões de negócios”, compara.

Daibert afirma que  a modalidade de vendas não deve acabar com outras formas de negócios. Ele fala ainda que é uma questão que tem sido debatida. “Não acredito que acabará com outras plataformas. Acredito na convivência e evolução da linguagem. O live commerce está encontrando o seu espaço, mas nem todo mundo quer participar de uma live para todos seus momentos de compra. Para alguns produtos e serviços, este formato funciona, como moda, eletrônicos e gastronomia. Para alguns outros, certamente, não tem tanta eficácia”, avalia.

Tendência

Willian Rocha, diretor de conexões da Agência3 e professor de mídias sociais da ESPM, observa que muitas marcas no Brasil estão utilizando esse tipo de estratégia digital, mas é importante lembrar que esse fenômeno ocorre primeiro na China e depois vem invadindo o mundo ocidental.  “Quando associamos a tecnologia de streaming à geração de vendas online, a nossa maior referência é a China”, diz.

Willian Rocha, da Agência3 e professor da ESPM (Divulgação)

O especialista cita como exemplo ações criadas pela plataforma Alibaba para o Dia dos Solteiros, que é realizado em 11 de novembro, data criada pelo grupo de vendas. A gigante contratou a cantora Taylor Swift, entre outras celebridades, para promover a data e impulsionar as vendas. Swift apresentou um concerto televisionado e transmitido ao vivo na véspera das promoções de 24 horas.

“Na última data comemorativa, o Alibaba conseguiu vender mais do que a Black Friday nos EUA e nesse aspecto uma das principais estratégias foi convidar grandes influenciadores, da própria China ou globais, estimulando o Dia dos Solteiros”, diz Willian. “Sua principal forma de gerar vendas foi por meio das lives, com pessoas que têm credibilidade e grande visibilidade no meio digital, associando a produtos que, normalmente, estão em um preço agressivo no período”.

Renata Bokel, CSO da WMcCann, também lembra que a pandemia potencializou o live commerce em todo o mundo. Mas, mesmo antes disso, no Brasil já se falava dos resultados e dos números que o live commerce apresentava, principalmente no mercado chinês. “Por aqui, a pandemia acabou se tornando uma alavanca para que os clientes e anunciantes arriscassem e investissem em novos canais e formatos de vendas digitais. Durante todo o período, até o momento, houve um grande impulso nas compras online, exigindo das marcas uma renovação drástica e rápida, como não se via há alguns anos. Acredito que o Brasil caminhou lado a lado com os demais países nesse sentido, aproveitando todas as oportunidades de negócios diante de um cenário tão desafiador”.

Renata Bokel, da WMcCann (Divulgação)

Ela fala ainda que o live commerce deve se destacar ainda mais daqui pra frente. “Visto os resultados e os números de outros países – como a China, que lidera o uso dessa estratégia e movimentou cerca de U$ 120 bi em 2020 –, tudo indica que este é um formato que ainda tem muito a oferecer no Brasil e no mundo”. Renata fala também da possibilidade de misturar entretenimento com conteúdo e “levar ainda mais confiança ao momento da compra, colaborar na construção da relação com os consumidores, o que atrai ainda mais o interesse das marcas a esse tipo de plataforma”.

Leonardo Rocha, diretor de marketing da B2W Digital, que é a detentora das marcas online de Americanas, Submarino, Shoptime e Sou Barato, afirma que, nos primeiros seis meses de 2020, o cenário era desafiador em função da pandemia, o que trouxe enormes aprendizados e motivou ainda mais agilidade. “Com foco na mudança de hábito do consumidor, lançamos o Americanas ao Vivo, primeiro projeto de live commerce do varejo brasileiro, em junho do ano passado. Com o projeto, criamos uma nova forma de venda, inovadora e humanizada, com a demonstração ao vivo de produtos no app da marca. Vimos o quanto faz diferença para o cliente, ao realizar uma compra online, ter a real dimensão de como é o produto, para avaliá-lo melhor e adquiri-lo naquele momento, em um ambiente integrado e ágil, dentro do app da Americanas”, conta.

Segundo ele, até o momento, já foram realizadas mais de 60 lives em horário nobre, totalizando mais de 70 horas de transmissão. “Demonstramos produtos de vários departamentos nas lives, como beleza, eletrônicos, artigos esportivos, bebês, decoração e games, e vamos expandir para outras categorias, sempre buscando formatos diferenciados e inovadores para oferecer ainda mais conteúdo ao cliente na hora da compra. Acreditamos que esse formato só vai crescer e se aperfeiçoar nos próximos anos, otimizando cada vez mais os serviços oferecidos aos clientes”.

O executivo afirma ainda que misturando compras e entretenimento, além de condições de pagamento para os itens demonstrados, a Americanas registrou um crescimento de mais de dez vezes na busca dos produtos divulgados durante as lives. “Os resultados estão sendo tão bons que pretendemos expandir cada vez mais as lives dentro do app da Americanas. Inclusive, já abordamos outros formatos como, por exemplo, lançamentos de produtos exclusivamente no app, como foi o caso da linha de produtos de cabelo em parceria com a Camila Coutinho, o Ge Beauty”. Camila é parceira estratégica da Americanas ao Vivo para outras ações da marca.

Camila Coutinho, parceira estratégica da Americanas (Divulgação)