Paulão e Alice estavam casados já há alguns anos e formavam o clássico casal feliz. Os dois eram exemplos do marido e da mulher quase perfeitos. Gentis, compreensivos, apaixonados, cúmplices, pareciam viver um para o outro, embora também tomassem cuidado para que a vida em comum não fosse invasiva e ambos pudessem se sentir indivíduos.
Qualquer lugar-comum como esses que acabei de escrever e que encontramos em livros de autoajuda servia para explicar o casal.
No dia do aniversário de Alice, Paulão chegou em casa mais cedo, abriu uma garrafa especial de vinho que ele tinha comprado na adega ao lado do escritório e que o vendedor garantira que tinha uma “maravilhosa relação custo-benefício”, que é exatamente o que todos falam e que serve para empurrar qualquer coisa, e a convidou a jantar fora, no Alecrin´s, meio caro mas uma despesa justificável diante da magnitude da data.
Comemorava-se mais do que um aniversário. Comemorava-se o encontro da felicidade, conforme declarou Paulão que – diga-se de passagem –, já chegara em casa meio calibrado por ter tomado duas caipirinhas no botequim onde comemorara com colegas sua própria sorte em ter encontrado uma mulher como Alice.
Para poder beber mais um pouco e não terminar a noite fazendo blowjob na Lei Seca, resolveram ir de táxi. Ao chegar no Alecrin´s, Paulão entornou um Dry Martini preparado pelo famoso Pereira, o barman primeiro lugar na Vejinha.
Alice, preocupada, ficou na água mineral. San Pellegrino, exigiu Paulão, já com leves indícios de manguacitude. E pediu a carta de vinhos. Mesmo diante do consagrado sommelier Aderaldo, fez questão de escolher sem pedir qualquer tipo de ajuda.
Note-se que Paulão sempre foi daqueles bebuns que se sentem meio deuses depois de algumas doses. Nem violentos nem melosos. Deuses. Não estivesse tocado, ele podia ter desconfiado. Ao ouvir o pedido, Aderaldo Sommelier arregalou os olhos.
E timidamente confirmou o pedido, arrastando o dedo pelo nome do vinho até a coluna do preço: “É esse mesmo Dr. Paulo?”.
Paulão não conseguiu focar direito o que estava escrito mas foi incisivo: “É aniversário dela, Aderaldo, quero do melhor”.
O sommelier deu de ombros e mandou vir a garrafa, que chegou juntamente com uma vela e um decanter. Repito: o imbecil podia ter desconfiado.
Fez-se uma rodinha de garçons para observar o maître e o sommelier tirarem a rolha da garrafa, apresentarem a rolha para Paulão que, num gesto que pretendia ser elegante, ignorou, e cuidadosamente, à luz da vela, transferiram o vinho para o decanter.
Os dois – os dois – cheiraram o primeiro gole colocado na taça. Olharam cuidadosamente para a cor da bebida, balançaram a taça e ofereceram para o Paulão experimentar como se fosse o próprio cálice sagrado. Paulão, que mordiscava um talo de aipo, mandou ver, bochechando a mistura de vinho com salsão como se pudesse realmente medir a qualidade da bebida.
Rosnou um “pode servir” e pediu uma entrada de alcachofras. Eu juro que entendo a Alice quando diz que Paulão é uma besta. Estavam no meio do prato principal, quando o garçom avisou que a garrafa tinha acabado. Paulão mandou abrir outra. Mais uma vez, o animal foi alertado.
Diante da majestática resposta: “Claro, porra!”, veio a segunda garrafa. Encurtando a história: Paulão bebeu as duas únicas garrafas de Domaine Leflaive Montrachet Grand Cru que o restaurante tinha e que custavam dez mil reais cada uma.
Veio a conta. Vinte e dois mil, duzentos e trinta reais. Vinte e dois mil pelo vinho e serviço. Duzentos e trinta reais pela comida. Café era cortesia. Paulão calmamente preencheu um cheque no valor da conta, arredondando para vinte e dois mil e trezentos reais, andou com o máximo de dignidade para a porta, ajudou Alice a entrar no carro, sentou-se ao seu lado e disse em alto e bom som: “Alice, hoje vai ter cu”.
E dormiu. Acordou em casa. No sofá e solteiro.
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