Meu escritório fica na Cinelândia, no Rio de Janeiro, e as janelas mostram uma paisagem que o prefeito Pereira Passos, cujo sonho era fazer do Rio uma Paris tropical, teria orgasmos múltiplos.

Do meu lado, o prédio da Câmara dos Vereadores, um pouco mais distante, o Theatro Municipal, em frente, a Biblioteca Nacional, e em seguida o Museu de Belas Artes.

Entre estes prédios, projetados para durar séculos, o monumento ao Marechal Floriano Peixoto. É bem verdade que a Biblioteca está em crise, o Municipal, apesar de recentemente restaurado, está com as pedrarias meio encardidas, e a câmara ainda ostenta mimosas intervenções artísticas, como “fora Cabral” em garranchos.

Também há um comércio ambulante de pipoca, queijo Polenguinho, Doritos e água mineral. E a maior coleção de pombos aleijados que já vi. Bichos capengas, caolhos, mancos, que produzem uma inacreditável quantidade de merda corrosiva, enfeitando os monumentos da praça e emporcalhando as janelas belle époque do meu edifício.

Há também a população de rua que promove animadas rodas de bate-papo, onde se incluem pelo menos dois cachorros que contrastam com seus proprietários, pois estão sadios, elegantes e certamente bem alimentados.

Do lado oposto da Câmara Municipal, onde era um luxuoso cinema na época que a Cinelândia atraía a população da cidade, temos uma franquia de uma Igreja evangélica, cujo pastor, um gênio do marketing, utiliza uma aparelhagem de som para anunciar os produtos da casa: afastar maus espíritos, curar alcoolismo, melancolia, depressão e inadimplência.

Na barulhenta disputa para ver quem mais polui sonoramente a região, de vez em quando surgem algumas bandas que, com um pouco mais um pouco menos de talento, destroem alegremente peças que vão do jazz tradicional a músicas clássicas, incluindo todo tipo de folclore, como flautas andinas e tambores bolivianos.

Sem se esquecer dos turistas, de sandálias Havaianas e mochilas às costas, tirando milhares de fotografias e se candidatando à insolação. Nestes dias de verão a sensação térmica se aproxima dos 50 graus, o que faz esses visitantes de todo mundo se transformarem em camarões suarentos, a se abanar desesperadamente num enorme espaço sem sombras, desenhado como uma praça europeia, uma ágora fervente.

Mas, apesar de tudo, a visão é deslumbrante, e essa contradição entre a arquitetura monumental e a dura realidade da vida parece ser uma permanente lição de humanidade.

Pelo menos uma vez por semana há uma manifestação. São sindicatos, associações, partidos e black blocs que se reúnem para reivindicar melhores salários, planos de carreira, gratuidade no transporte, fim da corrupção, uma sociedade mais justa e mais humana, fim do capitalismo, fim do consumismo, mais educação e saúde… Essas coisas.

Os discursos são mais ou menos os mesmos, com exceção das feministas, que querem a cassação do Bolsonaro e do Pastor Marcos Feliciano – aliás, têm todo meu apoio. São causas que me causam grande simpatia, embora eu ache que minhas queridas (e aguerridas) companheiras podiam gritar menos e não estuprar tanto a pobre língua pátria.

Logo no térreo do edifício temos o Bar Amarelinho, que à medida que anoitece vai colocando mesas e cadeiras na calçada, imitando um pouco Veneza, embora cobrando preços que levariam à falência os dodges da Sereníssima República, pois 20 mangos por uma caipirinha é um absurdo. Mas o desfile das moças que trabalham nos arredores, a alegria dos amigos que se encontram para esperar o trânsito melhorar e esse espírito inexplicável que paira no ar desta cidade, justificam o preço cobrado.

Num desafio à sanidade física e mental, tem turista que enfrenta feijoada com cerveja debaixo da cobertura de lona do restaurante, numa temperatura que faria o demônio sentir saudades do lar.

Pois bem, minha irmã que mora em São Paulo veio me visitar. Sentou-se no Amarelinho, pediu um chope, olhou tudo isso que descrevi, abanou-se com o cardápio e me disse, com olhos cheio de admiração e inveja: “Você é que é feliz!”.

É, pode ser.