Mesmo depois de 43 anos denunciando “sujeira pra todo lado”, a ardileza de Renato Russo ainda não encontra resposta e o brasileiro segue perguntando Que País é Esse?. A letra escrita há mais de quatro décadas nunca foi tão atual.
Ameaças à Constituição, mortes por Covid-19 que poderiam ter sido poupadas, falta de coordenação política para a vacinação, clima de hostilidade e descaso com a ciência e o meio ambiente seguem manchando a imagem de um país que só avança pela força e resiliência do seu povo. Mas ainda há quem acredite no futuro de uma nação que tem no futebol e no Carnaval traços inerentes à sua identidade.
“Impossível apagá-los. Porém, são só uma parte. O nosso desafio é integrar outros ingredientes de nossa personalidade”, indica Jaime Troiano, CEO da consultoria TroianoBranding. Vocação nata do DNA brasileiro e principal asset do mercado publicitário, a criatividade é apontada como um dos pilares capazes de erguer a imagem do Brasil, o 16° país mais valioso do mundo, segundo ranking da consultoria britânica Brand Finance. O valor estimado é de US$ 764 bilhões, queda de 15% em relação ao relatório apurado em 2019. A liderança é dos Estados Unidos, com US$ 23,7 trilhões.
“Nas adversidades é que somos mais criativos”, enfatiza Fábio Melo, diretor de mar- keting da empresa cearense de alimentos M. Dias Branco. Para Aldo Pini, CSO da Africa, “a gestão pública erra em não compreender que a criatividade precisa ser um pensamento estruturado, e não apenas um simples ‘brotar’ do desespero”.
Da experiência de internacionalização da Chilli Beans, feita ao longo dos últimos 15 anos, vem a certeza do potencial dessa linha de comunicação. “A diversidade cultural garante a criatividade e o sex appeal que poderiam ser mostrados de um jeito estratégico para o mundo”, comenta Caito Maia, CEO da companhia, que acaba de fechar contrato com um dos maiores grupos de varejo alemão, além de acertar a chegada da marca à Austrália em 2022.
“O mercado publicitário continua sendo um dos melhores do mundo”, sinaliza Maia. Talentos nas artes e cultura representam o maior soft power para uma marca carente de renovação. “Se Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento e companhia não conseguirem salvar a imagem do Brasil com suas histórias, arte e verdade, ninguém consegue”, desabafa Agatha Kim, diretora-executiva de estratégia da BETC/Havas.
O professor de MBA da Fundação Getulio Vargas (FGV) Roberto Kanter vai além. “É essencial transformar um povo que é alegre, criativo e espontâneo em ativo para a transformação digital. Temos de sair do estereótipo do Carnaval. Adoraria enxergar o Brasil como o país da inovação”, pontua o especialista em marketing e empreendedorismo. A base do plano viria dos preceitos de aquisição e conversão desenvolvidos para personas dos cinco principais públicos-alvo do país, divididos entre turismo, serviço, cultura, indústria e consumo. Conteúdos com soluções sinestésicas seriam encarregados de garantir visitas e atrair investimentos.
A professora do programa de pós-graduação em administração da ESPM, Vivian Strehlau, cita a solidariedade, a postura hospitaleira e o bom humor típicos do brasileiro como componentes que devem ser considerados sem esquecer que geram inação e conformismo diante das adversidades.
“Poucas empresas colocam o Brasil como um elemento importante na construção da própria marca. A maioria acaba escondendo que é brasileira para aumentar credibilidade”, pondera. Apartar o “jeitinho brasileiro” é essencial. “Demoramos para entender que isso tem mais relação com desvio de caráter do que competência. A criatividade do brasileiro é muito maior, assim como a sua capacidade de inovar e produzir”, adverte Pini.
Para a professora e pesquisadora na área de estratégia e marketing da Fundação Dom Cabral, Luciana Faluba, é importante separar marca de reputação. “A marca é a história que nós contamos sobre nós mesmos. A reputação é a história que os outros contam sobre nós. Ambas precisam estar alinhadas”, esclarece.
O contexto se agrava pela cobrança por entregas rápidas e falta de planejamento, situação que coloca o brasileiro como um dos campeões em refazer o mesmo trabalho, onerando custos e protelando prazos. “Planejamento é o que falta para o Brasil encontrar a sua vocação de transformação, e o ambiente do negócio entende cada vez mais a importância de testar antes de investir. Já temos de pensar no Brasil das décadas de 2030 e 2040”, acredita Kanter, da FGV.
ontudo, a visão de longo prazo embaça quando encontra lentes míopes na construção da marca Brasil. “Se esse trabalho existe de fato, ele é mal resolvido, intermitente e pessimamente planejado e executado”, analisa Troiano. Sem clareza, o país fica refém de especulações, traços de identidade mal costurados e percepções desorientadas. “Enquanto o discurso não for de união e busca por um propósito, não haverá mudança cultural que permita a melhora da nossa imagem fora do Brasil”, critica Agatha, da BETC/Havas.
Falta de oportunidade não foi. Vieram os Jogos Olímpicos do Rio, em 2016, e a Copa do Mundo do Brasil, em 2014, que terminaram escapando aos olhos do mundo. Países também já se apropriaram de territórios que poderiam ter sido explorados pelo Brasil, como o café, tomado pela Colômbia. “Paraisópolis é sinônimo de desenvolvimento e economia circular. Também temos polos empreendedores no sertão pernambucano”, sugere Pini.
Na opinião de Kanter, outra oportunidade foi perdida quando a China começou a ser questionada pela falta de matéria-prima no início da pandemia do novo coronavírus. “O Brasil pode ser o celeiro de alimentos, mas a China é a planta industrial do mundo, e as empresas perceberam o quanto são dependentes. O Brasil poderia ser a alternativa ocidental à China”, avalia o professor da FGV, esbarrando na ausência de uma política desenvolvimentista orientada à inovação, que deveria partir do incentivo do governo à importação e à transformação digital.
“O Brasil é hoje a marca do espanto. Investimentos em inovação, educação e sustentabilidade com proof points certamente teriam efeitos positivos”, resume Agatha. A governança intersetorial é a saída para Luciana, da Fundação Dom Cabral. “A sociedade brasileira vive sob o paradigma estadista. O caminho é articular os setores em prol da solução dos problemas”, propõe.
Campo de oportunidades
Organizar as bases concretas do processo econômico, mercado interno e laços comerciais é imprescindível para que a estratégia de branding nacional possa espelhar a realidade do país. “Mas o interesse em olhar para microcausas é maior”, lamenta Kanter. A exemplo da “charrete que perdeu o condutor”, na definição de Raul Seixas para os anos 1980, a reedição da década perdida surpreende o estudioso.
“Achei que nunca viveria isso de novo. Existia um projeto de avanço. Mas o que aconteceu foi o fato de as pessoas agora poderem ter seis armas em casa”, conclui o consultor. A confiança na realização de reformas liberais sob o comando do ministro da economia, Paulo Guedes, é cada vez menor e, na avaliação de VanDyck Silveira, CEO da Trevisan Escola de Negócios, dá lugar a um governo que exerce o seu poder de forma agressiva e até imatura, exacerbando a desconfiança.
“A pior parte da marca negativa brasileira está na agenda ambientalista”, assinala Silveira. O economista levanta o agronegócio como outra plataforma de marca capaz de honrar a pretensão de quem pleiteia um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, além de evitar interesses manobrados internacionalmente. “A floresta amazônica é preservada em mais de 67% da sua cultura original, conseguimos reverter a extinção do boto cor-de-rosa e erradicamos a febre aftosa. Mas é preciso contar os esforços por um discurso construtivo e não combativo”, frisa.
Entre mandos e desmandos de direita ou de esquerda, os avanços do campo permanecem à sombra e perde-se a oportunidade de mostrar a participação do Brasil na produção de alimentos nutritivos que estão na mesa de consumidores de todo o mundo. Mesmo quando o país consegue se desvencilhar de oscilações político-econômicas, acaba retrocedendo ao clichê do Carnaval em vez de mostrar o lado pujante da economia.
“Padecemos de uma arrogância indevida. Falamos que as nossas praias são as mais bonitas do mundo quando, na verdade, a nossa força competitiva está no parque industrial e no agronegócio”, defende Silveira. A bronca vem ainda da agência Africa. “As belezas naturais têm potencial para serem exploradas de forma responsável para a geração de valor. Infelizmente, seria demagogo falar que valorizamos aquilo que hoje não temos o menor cuidado, repreende Aldo Pini.
As pressões internacionais afligem a imagem do país no momento em que os Estados Unidos recolocam as questões climáticas no centro da pauta sob o comando do presidente Joe Biden. “Temos um desafio de lidar com um ambiente interno e externo volátil, com situações que são de difícil previsão e nunca foram vividas na sociedade moderna, o que dificulta a nossa capacidade de corrigir questões estruturais e, diretamente, os negócios do país”, admite Fábio Melo, da M. Dias Branco. Mas o executivo não acredita que haja um desalinhamento com a comunidade mundial. “Os nossos valores como nação seguem os mesmos. A oportunidade para evoluir não tem a ver com esse ou outro governo. São desafios de toda uma geração”, diz.
Apesar do momento de baixa autoestima nacional, Troiano confia na recuperação da saúde ecológica, ambiental, social e econômica do Brasil. A expectativa de Kanter é por uma readequação do discurso brasileiro “sem ter, no entanto, o protagonismo do país nas causas ambientais e de sustentabilidade”. As críticas podem até enfraquecer, mas a jogada deve insistir no escanteio. “Tirando a época da Copa do Mundo, o Brasil não existe e isso não é de hoje”, lembra Kanter. Acostumado a bater o “corner” e cabecear para o gol ao mesmo tempo, o brasileiro segue abrindo o próprio caminho.
Um exemplo é a marca carioca de produtos life style para cães Zee.Dog. A empresa partiu de uma rodada de investimentos de R$ 3 milhões em 2012 para um aporte de R$ 100 milhões captados no ano passado sob o comando da Treecorp Investimentos e com a presença de fundos como Quartz – da família de José Galló (Renner) -, Atmos e Charles River Capital. Hoje, está em 42 países. “A falta de previsibilidade atrapalha, mas nunca dependemos do governo para crescer”, garante Thadeu Diz, que fundou a empresa com seu irmão, Felipe Diz, e Rodrigo Monteiro.
Caito Maia diz o mesmo. “Ponho a minha energia onde eu posso interferir. Mas sinto falta de um trabalho de branding feito pelo governo, uma referência além do lado sexy do Carnaval”, reconhece o fundador da Chilli Beans.
“Por mais que a gestão pública conduza tão mal nossos destinos, não acredito que comprometam nossa natural identidade. Ela é forte e enraizada em nosso espírito nacional e, por isso, resistirá”, acredita Troiano. Kanter concorda. Para o consultor, as empresas já estabelecidas não vão perder mercado mesmo com a inércia do governo. Mas as novatas, que se apresentam com DNA brasileiro, podem sofrer. “Penso que entre 20% e 30% das novas possibilidades de negócios que as empresas brasileiras teriam no exterior venham a se eliminar no primeiro minuto de jogo”, calcula.
O sinal de alerta ressoa quando “até países vizinhos, como Colômbia e Argentina, resistem em receber brasileiros e nossos produtos”, alerta Troiano. Dos estudos de Vivian Strehlau, da ESPM, salta a conclusão de que “todo mundo quer um amigo brasileiro, mas poucos querem fazer negócios com o Brasil. E com o desrespeito ao coletivo, nem amigo brasileiro as pessoas vão querer”, reitera. Na torcida por uma recuperação baseada em ações e não apenas tuítes, o brasileiro segue em busca da Perfeição também cantada por Renato Russo numa era que insiste em espantar o avanço do Brasil.
Soft power
A consultoria britânica Brand Finance acaba de divulgar o Índice Global de Soft Power 2021, com os 30 países com mais potencial de influência por meio da cultura, valores, comércio e relações internacionais – na lista hard power estão países com poderio militar, por exemplo.
O Brasil despencou seis posições, e agora ocupa a 35ª posição entre os 105 países avaliados. Foi ultrapassado por Qatar (26º), Turquia (27º), Grécia (31º), Tailândia (33º) e Egito (34º). A nova potência global do soft power é a Alemanda. O país conduzido pela chanceler Angela Merkel – considerada a líder mais respeitada do mundo – desbancou os Estados Unidos, agora na sexta colocação.
A queda do Brasil é atribuída à má gestão da Covid-19, com a pior percepção global, segundo os 750 especialistas entrevistados neste recorte específico – que avaliou um total de 30 países. Já os 75 mil respondentes do público em geral colocam o país governado por Jair Bolsonaro em 103º lugar de uma lista com 105 nações. Os Estados Unidos foram os que mais perderam pontos (11,2) e os que tiveram o pior índice do mundo na percepção da pandemia. Outras perdas significativas estão na China (4,4), Índia e Reino Unido (3,9) e França (3,2).
A única categoria em que o Brasil ficou entre os Top 10 foi a de cultura, na oitava posição – a mesma do ano passado. O país ficou entre os Top 30 em familiaridade (12º, subindo uma posição), pessoas e valores (19º, subindo sete posições), influência (22º, caindo uma posição), reputação (27º, subindo cinco posições), mídia e comunicação (29º, subindo nove posições) e comércio (30º, subindo cinco posições).
O setor com o melhor resultado brasileiro foi o de mídia e comunicação com a conquista de nove posições – a segunda maior entre os 60 mercados pesquisados. Na liderança do ranking global, o Reino Unido derrubou os Estados Unidos. A Alemanha aparece em terceiro e o Canadá assumiu a quarta posição, antes pertencente à França.
As piores avaliações do Brasil foram nas áreas de relações internacionais (33º, subindo quatro posições), educação e ciência (37º, caindo duas posições) e governança (58º, caindo 18 posições), além da Covid-19. O Brasil permanece como a maior potência de soft power da América Latina e Caribe, mas é o único líder regional que perdeu pontos em relação ao ano anterior.
O levantamento partiu de duas pesquisas realizadas no final de 2020. A primeira ouviu 75 mil pessoas de 102 países com idades entre 18 a 75 anos. Também foram entrevistados 778 especialistas de 47 países, representando categorias identificadas como alvos e canais de soft power, incluindo líderes empresariais, acadêmicos, jornalistas e ONGs. No total foram quase 76 mil entrevistados em 53 idiomas.
Crédito da ilustração no destaque: Jean Campos Romeu