“Vês?! Ninguém assistiu ao formidável enterro de tua última quimera. Somente a ingratidão — esta pantera — foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que, nesta terra miserável, mora entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera. Toma um fósforo, acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro. A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa inda pena a tua chaga, apedreja essa mão vil que te afaga, escarra nessa boca que te beija!”

Augusto dos Anjos, autor deste poema (Versos Íntimos), não tinha Facebook, nem internet, nem ao menos televisão ou rádio. Mas a descrença no ser humano perpassa por toda sua obra.

É como me sinto hoje, navegando pelo Facebook como quem entra no IML e se depara com as vítimas da vida exibindo sem pudor suas entranhas podres, suas mal- cheirosas intimidades num misto de sangue e merda.

Confesso que, mesmo com 70 anos de idade, não supunha o quanto as pessoas podem carregar de maldade, inveja, ódio e preconceito dentro de si. E como escrevem mal, pensam mal e se explicam mal!

O ressentimento, a generalização e o primarismo viram posts pestilentos, irresponsáveis diante do que podem fazer de pernicioso contra outras pessoas, entidades e o próprio país.

O caso da vereadora assassinada, amorosa criatura para todos que a conheceram, virou pretexto para os mais desvairados comentários, caminho para se distribuir preconceitos e ódios de todo tipo.

Contra a polícia, o Temer, a Globo, o PT. Fizeram do cadáver da pobre mulher um palanque. Até a reforma da Previdência e as leis trabalhistas entraram na pauta, assim como reclamar dos que calaram e dos que falaram, dos que se omitiram e dos que choraram em público. Todos quiseram se tornar proprietários do defunto, numa necrofilia insuportável.

Essa morta me pertence e só eu sei como pranteá-la era o resumo de grande parte dos posts no Face.

Pessoas que eu conheço, e até me pareciam razoáveis, não tiveram vergonha em exibir sua burrice, pequenez e ignorância, termos que não são redundantes e adjetivam várias características do cérebro e da alma.

E não sejamos injustos: pequenos, burros e ignorantes podem vestir toga ou jaleco, exibir “doutor” antes do nome ou carregarem sobrenomes de avenidas.

E assim vamos para as eleições, assim são as opiniões sobre a violência, dessa forma se pretende modificar o panorama político do país.

Ainda que na maioria das vezes vinda de militares reformados ou de vivandeiras, alguns fardados não se fizeram de rogados em distribuir sandices, ódios e rastaquerices.

O único alento que tenho hoje, quando me sento para escrever a coluna, é que tenho conseguido garimpar opiniões sensatas entre a montanha de sandices. Mesmo de pessoas com as quais não concordo, consigo perceber boa-fé e bom propósito.

E, por uma tremenda coincidência, estou lendo um livro sobre a Idade Média e vendo o quanto, apesar de tudo, a humanidade evoluiu para melhor.

Claro que meia hora de noticiário na TV, uma rápida leitura nos jornais ou alguns minutos no Facebook são capazes de causar um enorme desânimo. Mas passa, como tudo passa, só por isso que continuamos. A não ser os que foram mortos.

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