O relógio da rua marca 45 graus. O motorista me olha através do retrovisor e sentencia: doutor, putaqueopariu! Não precisa explicar o porquê. O mundo à minha volta ofega, abana-se, sua e reclama. Tudo está lento, cansado. Tudo à mão é leque: jornais, bolsas, seja o que for maior que a mão, para produzir um ventinho quente, que não refresca, mas serve para respirar. Dentro dos ônibus, gente com olhar de gado a caminho de não se sabe do que, já que o matadouro é o próprio caminho. O motorista tem uma toalha enrolada ao pescoço, úmida, pegajosa. É o que lhe serve para enxugar o rosto, limpar as lágrimas e tudo o mais que lhe escorre pela cara. O uniforme, uma massaroca de pano molhado, mãos escorregando pelo volante. Não se vive num lugar assim. Mesmo no deserto os tuaregues não apeiam de seus camelos (perto da areia o calor é maior, que diga o saco do camelo) nem deixar de usar suas vestes brancas e folgadas, antídoto ao sol.

Aqui no Rio tem gente de camiseta preta, mulheres de terninho e até mesmo alguns advogados de paletó e gravata. Isso na rua, claro, pois nos escritórios ou em lugares fechados, o ar-condicionado está permanentemente ligado no máximo. Para que as pessoas possam pensar. Eu tive de fazer uma foto e fui para a Lapa, onde fica o estúdio do fotógrafo. Uma rua que começa na Sala Cecília Meirelles e termina na Escadaria Selarón, um dos pontos turísticos do Rio. Um beco feio, maltratado e quente. A boca do inferno, ainda que a escadaria valha a pena. Turista é bicho louco e gosta do calorão. Até morrer de insolação ou descascar como ovo cozido. Vai daí que ao chegar no prédio do fotógrafo descubro que não há energia. Nem no prédio nem no bairro todo. As pessoas me aconselham a não subir, o edifício tem imensas janelas de vidro que botam o sol para dentro. Há relatos que teimosos desmaiaram. As fake circulam. Um porteiro climatólogo garante que nas salas o calor é de 60 graus, ou mais. Fico na rua, junto com os turistas e habitantes do local, lojistas e profissionais do sexo, expulsos pelo calor inacreditável. Logo abaixo do prédio há um bar, lotado, mas sem nenhuma venda, pois nada funciona. As pessoas usam as cadeiras para descansar. É o que faço, privilégio da idade. Consigo uma água num copo de vidro, quente, mas água. E fico ali, suando e bebericando a aguinha. Alguém que conheço passa num carro pela rua estreita e me dá um adeusinho, de dentro de seu casulo de ar-condicionado. Respondo-lhe. Ele se vai. De repente me ocorre um pensamento: já pensou esse cara contando que me viu, às dez da manhã, bebendo num boteco na Lapa, cercado de putas?

Foto perdida, já que a Light garantiu que até o meio-dia a energia voltava e a opinião unânime era que a Light não tem a menor credibilidade e “até o meio-dia” poderia significar já, amanhã ou depois, resolvo ir para casa, para o meu ar-condicionado. Sentado na sala, com um copo de suco com gelo, noto que deixei a porta do quintal aberta e meu cachorro, um imenso Labrador jovem, entrou. Ele não pode entrar em casa. Não só porque é de sua propriedade um enorme quintal, como ele pessoalmente é um desastre ecológico. Onde ele passa não fica pedra sobre pedra, bibelô sobre bibelô, porta-retratos, troféus e obras de arte. Ele destrói tudo à rabadas.

Logo, profilaticamente dividimos os espaços . Mas o Moka (esse é o nome dele) entrou. Normalmente ele quando me vê pula em cima de mim. E lambe, gane, se esfrega, abanando o rabo de pura felicidade. Ele me ama. E eu a ele. Mas não deve entrar em casa. Pois bem, estou lá pensando na vida quando o Moka entra, quietinho, mal abanando o rabo, olha para mim, olha para o tapete e devagar, devagarzinho, vai deitar e fecha os olhos. Pensei no calor lá fora. Fingi que não percebi. E ficamos os dois aproveitando a temperatura civilizada e rezando pela alma do Carrier, seu inventor. O céu (onde ele deve habitar) deve ser um lugar fresquinho. Com um labrador amigo fingindo dormir.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira@grupomesa.com.br)