A pandemia de Covid-19 está causando visíveis impactos na economia mundial e, ainda que alguns países já estejam estruturando o retorno de certos segmentos da indústria e comércio, as notícias mais recentes revelam que o setor de entretenimento está sendo um dos mais afetados.
Em pesquisa produzida pela PWC em 2016, estimava-se que o mercado global de mídia e entretenimento cresceria a uma média anual de 4,2% nos cinco anos subsequentes, chegando, em 2021, a US$ 2,23 trilhões. Para o Brasil, a projeção de faturamento do setor para aquele ano era de US$ 43,7 bilhões.
Dados publicados em 2019 mostravam que o setor empregava, no Brasil, cerca de 5 milhões de pessoas, entre formais e informais, o que representava quase 6% de toda a mão de obra do país. Não é demais dizer, portanto, que a cultura, arte e o esporte possuem relevante papel no cenário econômico, gerando uma cadeia de empregos fundamental à nossa economia.
As determinações de distanciamento e isolamento social em todo o mundo para a contenção da disseminação do Covid-19 atingem em cheio o setor – cinemas e salas de shows fechados, produções de toda espécie paralisadas quando não canceladas. Artistas, maquiadores, produtores, fotógrafos, cenógrafos, músicos, cantores, atletas, feirantes, empresários e inúmeros outros, todos impactados sem clara perspectiva de retomada de seus negócios nos modelos tradicionais.
Estudos recentes, dentre eles o da Universidade de Harvard (EUA) divulgado na revista Science , indicam que isolamentos sociais se estenderiam, clinicamente, até 2022, caso nenhuma vacina ou medicamento eficaz contra a doença venha a ser desenvolvido, pois picos secundários da doença são um risco considerável, o que impactaria ainda mais as perspectivas de retomada do setor.
Mas como toda crise, a pandemia traz aprendizados e oportunidades de crescimento para todos os mercados.
E com a indústria do entretenimento não é diferente. Em recente pesquisa divulgada pela Global Web Index , que buscou avaliar, geração por geração, o comportamento dos consumidores em meio à pandemia, foram verificadas mudanças no padrão do consumo de mídia nos Estados Unidos e Reino Unido após o isolamento. De boomers à geração z, mais de 80% dos consumidores disseram que estão consumindo mais conteúdo desde o início da pandemia, sendo a TV aberta e as plataformas YouTube e TikTok as mais principais mídias utilizadas.
No Brasil, com adaptações e respostas criativas aos desafios da reclusão e da paralisação econômica, os mercados fonográfico e publicitário brasileiros reinventam formatos e mecânicas de engajamento com o público e estão criando uma verdadeira “correnteza de lives”, com a produção por artistas e músicos de shows ao vivo e conteúdos variados transmitidos em plataformas de streaming como YouTube, Facebook e Instagram.
Nesse cenário, recordes mundiais de views simultâneos no YouTube foram recentemente batidos por lives de artistas brasileiros. A cantora Marília Mendonça, por exemplo, gerou mais de 3,2 milhões de acessos simultâneos no último dia 8, superando o recorde anterior alcançado pela dupla Jorge e Matheus que em live no dia 4 de abril, que atingiu 3,1 milhões de acessos simultâneos.
Colocando tais números em perspectiva, os acessos simultâneos da live de Marília Mendonça superaram em 85% o número de acessos simultâneos da live da superstar mundial Beyoncé, transmitida durante o festival Coachella 2018, que atingiu 458.000 views e liderava o topo da lista da plataforma até 28 de março.
O impacto das lives nesses tempos de confinamento não passou despercebido ao olhar ágil e dinâmico do mercado publicitário que enxergou nesses eventos uma nova oportunidade para alcançar milhões de consumidores. Ávidos por entretenimento, estão dispostos a assistir, por horas a fio, uma mistura de conteúdo de entretenimento com mensagens publicitárias.
Rapidamente, vimos grandes marcas se posicionarem como apoiadoras oficiais de várias dessas lives. Desde marcas de alimentos e bebidas até marcas de material de limpeza, cuidados pessoais e grandes redes varejistas, hoje é fácil perceber a presença, sutil ou não, de produtos e marcas nesses novos “palcos”.
Se antes da pandemia as lives recordistas de público transmitiam grandes shows, festivais e eventos, em tempos de quarentena, tomam um formato bem mais intimista, em geral, com transmissões diretas da casa dos artistas e com limitada equipe de produção e direção. O ambiente aparentemente privado e íntimo, no entanto, não as torna imunes às regras de ética publicitária ou mesmo a outros regramentos jurídicos e, nesse contexto, dois pontos merecem atenção: a publicidade não identificada e a publicidade relacionada a bebidas alcoólicas.
Com relação à publicidade não identificada, cabe mencionar que tanto a legislação protetiva ao Consumidor quanto as recomendações éticas do Conselho de Autorregulamentação Publicitária (CONAR) preconizam que toda publicidade deve ser clara, informada e imediatamente identificada pelos consumidores, independentemente de sua forma ou meio de veiculação .
Assim, qualquer mensagem que tenha como principal característica persuadir, na tentativa de induzir, endossar, vender ou estimular pessoas a adquirir ou consumir determinados produtos ou serviços é considerada publicidade, independentemente do meio que a divulga.
Nesse sentido, os chamados “mimos”, “recebidos do dia” ou mesmo patrocínios, sejam de uma live ou posts em redes sociais, exigem o mesmo cuidado de uma ação de merchandising em um programa de TV ou novela e devem identificar ao consumidor de que se trata de uma publicidade.
Uma estratégia amplamente adotada em posts para satisfazer tais imposições é o uso das hashtags #publipost, #publi, #publicidade, #ad, bem como o uso das designações “Parceria Paga”, “Sponsored Content”, “Patrocinado”, ou “Impulsionado por”. Em uma live, ainda que transmitida de um ambiente aparentemente privado, a clareza é igualmente fundamental.
Já a publicidade de bebidas alcoólicas demanda uma séria de requisitos para estar de acordo com as leis protetivas ao consumidor e as boas práticas do mercado. Fortemente regulada, está sujeita aos mesmos regramentos gerais da publicidade e, ainda, a parâmetros específicos, dentre eles, o de não induzir a adoção de comportamento prejudicial à saúde do consumidor, não induzir, de qualquer forma, o consumo exagerado do produto , além de limitações quanto ao seu horário de veiculação (em rádio e TV, entre 21h30 e 6h) e forma de exposição de marcas ou slogans, que não devem sugerir o consumo do produto. Para a publicidade na internet, em que pese a ausência de regramento expresso quanto aos horários de exibição de conteúdo ao vivo, todas as demais restrições são aplicáveis.
A representação ética instaurada pelo CONAR com relação à live do cantor Gusttavo Lima, patrocinada pela marca Bohemia e transmitida no último dia 11 de abril com alcance de 2,6 milhões de acessos simultâneos, mostra a relevância do formato no mercado. A representação foi aberta após denúncias ao Conselho de dezenas de consumidores que questionaram os supostos excessos ocorridos durante a live do cantor em relação à ingestão de bebidas alcóolicas e ao potencial estímulo ao consumo irresponsável desses produtos.
O próprio YouTube, após os números recordes das lives patrocinadas brasileiras, agiu de forma a reforçar aos artistas as regras de publicidade em canais da plataforma. A rápida resposta da plataforma já desencadeia reações diversas de artistas, produtores e marcas que buscam adequar o formato das lives de forma a respeitar as regras publicitárias de mercado.
Esse cenário, inédito para o mercado brasileiro, aponta caminhos disruptivos para o setor. O formato direct-to-consumer, oferecido pelas plataformas digitais, permite ao artista maior independência em relação às janelas de exibição de conteúdo tradicionais – como a TV aberta e o rádio. Para divulgação de seus trabalhos, lhes apresenta a oportunidade de consolidação de seu papel como verdadeiro influenciador de consumo. Mas essas oportunidades vêm acompanhadas de responsabilidades.
Por certo, quando falamos do mercado digital, agilidade e inovação são determinantes. Dito isso, considerando que os efeitos mercadológicos da crise resultante do COVID-19 terão uma cauda longa, o setor de entretenimento tem a oportunidade de se reinventar, criar e descobrir novos modelos de negócio e formatos de monetização de seu potencial. Tais novos formatos, no entanto, só se consolidarão como modelos de negócios sustentáveis para toda a cadeia do setor se observadas as “boas e velhas” regras praticadas por todo e qualquer negócio mainstream.
Fernanda Magalhães é sócia responsável pela área de direito do marketing e do entretenimento do escritório Kasznar Leonardos