“Quando eu compro o mundo fica melhor. E depois deixa de ser. Aí eu compro outra vez”. O testemunho está no filme Delírios de Consumo de Becky Bloom, mas bem que poderia ser o desabafo de qualquer consumidor ansioso demais para resistir às ofertas. A ansiedade já era considerada como o mal do século muito antes da Covid-19.
O empurrão veio com o mundo perfeito e imediatista ostentado nas redes sociais, palco da dicotomia entre a realidade e a vida virtual. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil se transformou em 2020 no país mais ansioso do mundo.
São cerca de 20 milhões de pessoas diagnosticadas com a doença agravada pelo medo de contrair o coronavírus. Dados de um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com mais de 13 mil pessoas em 11 países colocam o Brasil no topo da lista de casos de ansiedade (63%) e depressão (59%), seguido por Irlanda e Estados Unidos. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) confirma o mesmo cenário. Levantamento feito entre os meses de maio e julho de 2020 revela que 80% da população se tornou mais ansiosa na pandemia.
Um a cada cinco brasileiros buscou atendimento para tratar a saúde mental durante a quarentena, de acordo com pesquisa da farmacêutica Pfizer realizada pela Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec) com duas mil pessoas em cinco capitais. “Um dos sintomas mais claros do isolamento social é a ansiedade”, confirma Robson Gonçalves, professor dos MBAs da FGV e coordenador dos cursos de neurobusiness.
Seres programados para viver em bando, de repente, se viram apartados na quarentena. E, para compensar a privação de pequenos prazeres do dia a dia – do papo no intervalo do café ao prato preferido no restaurante – muitos fizeram das compras a sua válvula de escape.
“Pessoas em condições de saúde mental melhores sempre vão ser menos suscetíveis a gatilhos que possam ser antiéticos e agressivos de alguma forma ao consumo”, comenta Gonçalves. A necessidade de recompensa varia de acordo com as condições psicológicas do indivíduo. Há quem precise liberar constantemente a dopamina, neurotransmissor da recompensa.
“Por isso, o maior consumo de rede social”, esclarece Fabiano de Abreu Rodrigues, PhD, neurocientista, psicanalista, biólogo e antropólogo com especialização em neurolinguística e consultor de marketing. Quanto mais dopamina, mais ansiosa a pessoa fica, causando prejuízos mentais que interferem no comportamento e na saúde do cérebro. A região da lógica fica afetada. Muitas vezes, o consumidor acaba se atirando de cabeça nas dívidas.
Coincidência ou não, as vendas do e-commerce no Brasil alcançaram R$ 87,4 bilhões em 2020, alta de 41% em relação a 2019, de acordo com a Ebit Nielsen. Enquanto isso, a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) divulgada em agosto pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) indica que 72,9% das famílias brasileiras estão endividadas. É um recorde na série histórica apurada desde 2010.
Já O mapa da inadimplência no Brasil, divulgado pela Serasa em maio, mostra que existem 62,56 milhões de endividados. São mais de R$ 211 milhões de débitos encabeçados por bancos/cartão (29,7%), contas de luz, água e gás (22,3%) e compras no varejo (13%). O valor médio da dívida por pessoa é de R$ 3.937,38, aumento de 1,3% em relação ao mesmo mês de 2020, totalizando R$ 249,6 bilhões.
Livre arbítrio
Quem nunca se rendeu ao “Compre já” ou “Só até amanhã”? Mas usar a ansiedade como gatilho de compra em um momento de tanta vulnerabilidade é aceitável? Robson Gonçalves admite que a ansiedade combinada à ausência de situações prazerosas favorece estratégias de marketing. Apesar de existirem avisos – que cumprem obrigações legais – sobre cheque especial e moderação para bebidas alcoólicas, “as advertências deveriam ser mais generalizadas e algumas práticas eu acho que realmente deveriam ser banidas”, acredita.
A propaganda de brinquedo, por exemplo, rendeu muitas discussões no passado, e hoje “consideramos que não é aceitável mexer com o lado emocional de alguém que não tem como tomar uma decisão consciente de compra”, avalia. Mas o professor da FGV lembra que os limites éticos estão entre as principais discussões do neurobusiness. Situações onde as pessoas estão sob estresse têm sido aproveitadas ao longo de toda a história. “Não dá para creditar só ao neuromarketing”, pondera.
O professor Pedro Camargo, especialista em neuromarketing e biologia do comportamento do consumidor, concorda. Técnicas que provocam a ação do consumidor pela urgência ou escassez “existem há muito tempo e por muito vão persistir, não vai mudar”, garante. A prática é largamente usada não só pelo varejo. “Fazemos isso o tempo todo. É natural, é biológico”, insiste.
Fato é que a persuasão se aproveita de fraquezas para vender produtos, serviços e até ideias, mas essa técnica de convencimento não tira vantagem da operação cerebral. “Ainda estamos engatinhando nos estudos do cérebro e não temos fórmulas mágicas. O que temos é livre arbítrio para comprar ou não”, defende Camargo.
Humanização, exclusividade, confiança, novidade e até gatilhos que trazem as oposições de prazer, dor e amor “também podem ser aplicados independentemente do segmento onde a marca atua, mas o que vai determinar uma boa escolha é o propósito da marca, o objetivo da mensagem e a necessidade do público”, elenca Rosana Tabarim, gerente de planejamento da Jüssi. A exclusividade comunica os benefícios de grifes de luxo, enquanto o setor de serviço apela para as sensações de alívio, prazer e alegria ao resolver um problema do cliente.
Cuca quente
Na Ogilvy, os principais gatilhos e pain points são mapeados em conjunto pelas áreas de data intelligence e estratégia. Atenção, motivação e memorização são as bases do trabalho. “Não usamos ressonância ou tecnologias de medição de atividade cerebral, mas aplicamos o princípio básico do neuromarketing, que é entender o comportamento do consumidor através de sinais”, conta Viviane Sbrana, head de data intelligence da Ogilvy Brasil.
Busca, navegação, consumo de conteúdo, comentários em redes sociais e comportamento de compra são analisados. Um estudo da agência descobriu que as mães brasileiras estão exaustas, mas passaram a consumir 1h27 minutos a mais de conteúdo por meio de streaming. “Neste contexto entram as marcas, que precisam ter estratégias focadas em necessidades e sentimentos”, pontua Viviane.
A perda de alicerces diante das incertezas da pandemia fez com que a GM recorresse ao neuromarketing para identificar “como o carro pode ser um espaço que devolve a sensação de segurança e ajuda a reconectar as pessoas com aquilo que lhes dá prazer, como viagens rápidas de curta distância”, revela Hermann Mahnke, diretor-executivo de marketing da GM América do Sul.
Para Silvia Paes, diretora de estratégia da BETC Havas, o principal benefício está na captação de micromomentos no ambiente online. “Isso ajuda a entender um viés mais pragmático, e a nossa expertise transforma esse conhecimento em insights construtivos e criativos”, acrescenta.
Com rotinas, lares, relações e hábitos questionados, “o neuromarketing figura como um componente fundamental no entendimento de mudanças comportamentais de consumo”, corrobora Rosana, da Jüssi. Permeadas por toda a agência, as informações ajudam a acompanhar a evolução do relacionamento da marca com o consumidor, que quer ser visto como co-creator, no que a executiva define como a “era das comunidades”. Antes do afã de gerar emoções, Rosana deixa uma reflexão: “Conheça seu público para construir valor agregado”.
Aqui, não tem cuca fresca. “Comportamentos já existentes estão sendo aplicados em uma nova realidade”, avisa Priscilla Ceruti, head de estratégia da dentsumcgarrybowen e presidente do MamaLab. Quais atitudes serão despertadas? Nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, a vulnerabilidade entrou em cena quando a ginasta norte-americana Simone Biles decidiu não disputar as finais do torneio para cuidar da sua saúde mental. Priscila afirma que “cabe a cada marca entender como lidar com esse sentimento”.
Haja coração
Cerca de 95% das informações estão alojadas de maneira inconsciente. Dos 11 milhões de bits de informação que o cérebro capta por segundo, há consciência apenas de 40 bits por segundo em média. Os sentidos são percebidos em uma das áreas mais profundas e primitivas, o sistema límbico, onde se processam as emoções – daí a dificuldade de se expressar sentimentos.
Não há conflito entre o racional, o emocional e o instintivo – apenas um prevalece sobre o outro em certas ocasiões, e todos atuam juntos na tomada de decisão. Situações de prazer e medo são ativadas pelas mesmas áreas em indivíduos diferentes, de culturas e lugares diversos.
Esse padrão cerebral não mudou na pandemia. Embora incoerente para as ciências sociais, a aglomeração, por exemplo, era um comportamento previsível do ponto de vista biológico, pois todos os animais que vivem em bando se agrupam diante de uma ameaça. Já o ambiente é capaz de “mudar o nosso processamento cerebral dependendo da luz, temperatura, altura do teto e contato com o vendedor”, contrapõe Camargo. A pessoa pode ser convencida a ir à loja, mas lá acaba desistindo da compra.
Fora da homeostase, no entanto, a ansiedade afeta o sistema límbico. “As atitudes são mais impulsivas ”, explica o neurocientista Fabiano de Abreu Rodrigues. Compreender preocupações é vital. “As pessoas acabam reagindo mais, muitas vezes, sem racionalizar decisões”, reconhece Hermann Mahnke.
O executivo recomenda que a marca entenda quais estímulos ganham relevância, quais emoções influenciam na persuasão de um conteúdo e mobilizam as pessoas. “Utilizamos um storytelling envolvente, como na campanha Onix Music Trip, e na nossa mais nova campanha de Tracker, Restart ideias”, exemplifica Mahnke. As ações da Chevrolet foram criadas pela WMcCann, por meio de sua divisão Commonwealth//McCann.
O limite está na consciência de quem vende. “Tem empresas que fabricam e vendem telefones celulares que hoje são a maior causa mortis no trânsito. Outras vendem redes sociais que deixam as pessoas mais ansiosas”, atenta Pedro Camargo. Há duas áreas, a neurociência do consumo – que estuda o comportamento de consumo – e o neuromarketing – aplicado especificamente a um objetivo empresarial. A primeira é divulgada, a segunda não.
O motivo está no receio do “neuroalarmismo”. Será que estão invadindo o meu cérebro? “Isso é bobagem”, responde Camargo, certo de que “a ciência não é má. Más são as pessoas”, conclui. O estudioso conta que já existem manuais de bioética, mas ainda não foi criado um regulamento ético para o neuromarketing. “O que eu acho imperdoável”, reclama.
O cinema norte-americano usa o neuromarketing para avaliar pré-testes de trailers e políticos recorrem a ele para obter mensagens eficazes. Correto ou incorreto? “Se for para vender um filme que faz mal às pessoas, é incorreto. Se trouxer cultura, é correto. Se forem políticos que querem o bem da nação, é correto. Se for para usurpar o poder público, é incorreto”, diferencia Camargo.
Também as marcas usam o neuromar- keting para pré-testar campanhas. “Os resultados ajudam a afinar o ‘frame a frame’ para que a mensagem seja transmitida da melhor maneira”, aponta Silvia Paes, da BETC Havas. Segundo ela, o gatilho da neurociência geralmente vem do cliente, mas o time de business intelligence da agência também abre frentes de pesquisa para avaliação de performance.
A fronteira é tênue. O que vale são as intenções. “Facilite a compra, mas não apresse. A probabilidade de a marca cruzar o limite ético é bem menor”, orienta Gonçalves. Mariana Munis, professora de marketing e comportamento do consumidor da Universidade Presbiteriana Mackenzie Campinas, reforça que o limite do neuromarketing é a ética. “Não adianta estimular o consumo no curto prazo e depois a pessoa não comprar mais”, adverte.
Quebra-cabeça
Emocionar é uma das peças mais importantes desse jogo. “Seja para convencer ou persuadir, emocionar é biológico, e permeia todos os atos humanos. Se não é honesto, todos somos desonestos o tempo todo”, argumenta Camargo. Como contar histórias que gerem conexão? É preciso liberar neurotransmissores, neuro-hormônios e hormônios corretos no momento exato de cada fase do arco dramático.
A atenção vem do cortisol. Já a expectativa é ativada pela noreprenifina. O ápice da história deve trazer a ocitocina, neuro-hormônio da confiança e da identificação. No desfecho, agem a serotonina, que traz calma e felicidade; e a dopamina, para estimular atitudes.
Das emoções que despertam a vontade de consumir uma marca, Viviane Sbrana, da Ogilvy, destaca felicidade, medo, raiva, tristeza e estresse. A agência utiliza a metodologia Emojometro, que compreende o estudo semântico e emojis para detectar aspectos afetivos e cognitivos. “A análise combina a emoção ao gatilho que a despertou e ao momento de consumo”, detalha. “As pessoas querem marcas que se conectem genuinamente, sejam coerentes com o seu propósito, e tenham empatia para entender as questões que assolam a humanidade”, alerta a professora Mariana.
Mas o consumidor também precisa fazer a sua parte, e entender a sua relação com o marketing. “As empresas associam a ideia de felicidade às suas marcas, e não tem nada de errado nisso. O que não pode é ter mitos contatos de maneira retocada, ser utilitarista e pegar só aquilo que te serve”, critica Robson Gonçalves, que repreende: “Heróis, muitas vezes, chegam à beira do abismo, e as pessoas recuam muito antes disso. É uma ofensa ao conceito de arquétipo”.
Espelho
A GM trabalha com a figura do “explorador”, perfil que induz à descoberta de novos caminhos. “Passamos a propor conversas em busca de engajamento, pela resposta dos consumidores aos nossos estímulos de comunicação”, relata Hermann Mahnke. A marca montou um time que monitora os seus públicos por meio de social listening a fim de se conectar a narrativas que vão além da venda de um carro. “A Chevrolet faz parte da vida das pessoas, e pode conversar sobre o que gera identificação”, justifica o executivo.
Curiosidade, resposta rápida a uma oferta, vínculo. Esses são alguns dos sentimentos que a marca busca despertar ao longo do processo de compra de um automóvel. “Aprendemos constantemente com a nossa base de dados. Quem sabe possamos abrir nossas descobertas para inspirar marcas e profissionais”, instiga Mahnke.
Buscar o personagem ideal para a marca é um dos trabalhos do neurocientista Fabiano de Abreu Rodrigues. “Já me deparei com um comediante de um milhão de seguidores, mas descobri que é quase tudo fake, desde likes e comentários até seguidores”, confessa. Rodrigues encontra alguns acertos e muitos erros. “Vejo jovens fazendo melhor a sua rede social que muitas celebridades orientadas”, desabafa.
Para o psicólogo e psicanalista Ronaldo Coelho, a busca por atalhos, como a ansiedade, somada à ideia de que a felicidade só será alcançada com a compra do produto, é uma estratégia que precisa ser reavaliada. “Enquanto as marcas verem o ser humano apenas como consumidor, não acredito que possa haver mudanças efetivas”, questiona.
Coragem para pensar em outra maneira de vender é a sugestão de Coelho a fim de que as marcas ajudem a proteger a saúde mental das pessoas.
A aposta implicaria em abdicar do “fácil para gerar valor a partir dessa preocupação”, propõe. Mas ele não acredita em uma ampla transformação. “Somente as marcas que realmente podem prescindir das estratégias que produzem ansiedade arriscarão outro modo de se colocar para seus potenciais clientes. Isso seria um diferencial, mas não uma ruptura”, lamenta.
Boa ideia
A consciência deve existir também no mundo digital. Agora que as pessoas já sabem o que a internet oferece, devem ser capazes de reagir, identificar abusos e impor os próprios limites. “Muitas vezes, temos de cruzar a fronteira para refletir”, indica o professor Robson Gonçalves. A necessidade de novos padrões de consumo é tão clara quanto os sinais de esgotamento do planeta.
A influência veio do mercado norte-americano há mais de 30 anos. Mas hoje perdeu o sentido. “Não existe mercado consumidor para todas as pessoas na Terra”, situa Gonçalves. A conta bate à porta das novas gerações, mais conscientes de sua postura como consumidores e do papel das marcas.
Cada um tem a sua parcela de responsabilidade. Empresas podem até se beneficiar de disfunções neuronais coletivas, mas o consumidor é quem decide. E é bom saber que a ansiedade é uma pendência. Não só para pedir mais liberação de dopamina, como para resolver situações de perigo. Ela busca soluções em memórias negativas. Cada vez mais neurotransmissores da felicidade são necessários. É um ciclo intermitente.
“Hoje, vende-se mais devido a esta ‘enfermidade’ coletiva, mas amanhã essas pessoas podem estar doentes”, analisa Rodrigues. O que precisa mudar é a conscientização do limite. “Temos de parar de culpar os outros. Se eu comprei aquele produto por impulso, a culpa foi minha, ninguém me obrigou”, observa Rodrigues.
Marcas e publicitários fazem a sua parte. Cabe a cada um o uso da inteligência para traçar os limites e preservar a sua saúde mental. Exceção? Só mesmo se for como Elton John, que é shopaholic assumido, mas não precisa ficar ansioso para pagar a conta do cartão de crédito.