Está longe de ser novidade no mercado a presença de criativos na linha de frente das agências de publicidade. Mas esse movimento teve uma aceleração nos últimos meses, em uma tendência capitaneada por uma nova geração de líderes com origem na criação que absorveram conhecimentos de gestão de negócios para dar um passo adiante na carreira.
Segundo a linha de análise da maioria dos entrevistados pela reportagem, a nova onda de criativos na presidência indica um ponto de inflexão de um mercado que, para ampliar sua relevância e diferencial estratégico diante da concorrência de consultorias de negócios, empresas de tecnologia e plataformas digitais, precisa priorizar o produto criativo com características únicas de suas agências. E, obrigatoriamente, fazer com que ele tenha uma profunda conexão de negócios e impacte na resolução dos problemas dos clientes.
No mais recente exemplo disso, neste mês de abril, o CCO Ricardo John foi alçado à presidência da J. Walter Thompson. Ezra Geld também foi promovido e passou a ocupar o cargo de CEO do Grupo JWT no Brasil, composto por oito agências. Em fevereiro, a DM9DDB anunciou a estrutura de liderança com Marcio Oliveira, responsável pela gestão do negócio, e Paulo Coelho, CCO. Ambos acumulam a função de copresidentes. “É importante ter alguém da criação na frente do negócio, porque ele tem o olhar para a qualidade do trabalho que vai para a rua. Claro que a criação sozinha não resolve nada sem o viés de negócios. Muitas agências lideradas só pela criação na frente não deram certo”, explica Coelho que, nos últimos anos, se preparou sob o ponto de vista de business na prática do dia a dia.
No caso de sua agência, a opção pelo modelo de copresidência é uma forma de integrar dois profissionais que, embora tenham especialidade em negócios (Oliveira) e criatividade (Coelho), também conseguem militar do outro lado.
Outra agência ligada ao Grupo ABC, a Africa tem a mesma estrutura de presidência compartilhada desde 2010, com o CEO Marcio Santoro e o CCO Sergio Gordilho. “Não acredito em uma agência em que a liderança não seja criativa. Se o criativo não estiver na linha de frente, não manda em nada, apenas segue. Ele precisa ter o poder de redirecionar a agência para o que ela faz de melhor: ter ideias que transformem os negócios das marcas. Mas também não acho que ele deva fazer isso sozinho, porque assim ele deixa de ser criativo”, resume Gordilho.
Preparação
Muito do movimento de valorização dos criativos tem a ver com a própria maturidade dos profissionais. A busca por conhecimento de negócios, seja através de cursos, ou de experiência, pautou esses líderes, como no caso do próprio Gordilho, que estudou na Berlin School of Creative Leadership. Essa capacidade surge como diferencial num momento em que as agências estão sendo desafiadas a mostrar sua importância estratégica para o cliente, diante da concorrência de empresas de consultoria e tecnologia.
“Esse fenômeno de criativos líderes está com nova força porque é propício para as agências que essa cultura se propague, com privilégio para o resultado criativo e ao produto diferenciado e competitivo. Para muitos, dados são apenas números. Nós temos a capacidade de transformá-los em algo sedutor”, analisa Luiz Sanches, sócio e diretor-geral de criação da AlmapBBDO. A agência tem gestão compartilhada entre Sanches, a sócia e diretora de estratégia Cintia Gonçalves, e o vice-presidente executivo de operações e negócios Filipe Bartholomeu.
Com a cultura criativa bem definida e enraizada a partir da liderança, as agências esperam enfrentar também a questão da commoditização do produto publicitário. Em analogia ao mundo do rock, Sanches explica a situação, lembrando de bandas com identidade muito característica, como Led Zepellin. “O mercado da música passou para um outro momento em que as bandas já não tinham mais sua personalidade. Foi quando o rap e seus ícones, como Jay-Z, que tinham uma alma própria, começaram a predominar como ídolos musicais”, relembra. “Da mesma forma, a propaganda, em algum momento, começou a perder suas caras. Se a agência não tiver sua identidade preservada, é um problema grave, porque perde a relevância para outros players”, avalia. Sanches é otimista e acredita que as agências querem, nos próximos anos, reforçar seu estilo próprio. Ter um CCO na liderança é parte importante disso, mas como ele mesmo avalia, e citando o exemplo do antigo sócio José Luiz Madeira, que veio do planejamento, executivos oriundos de outra área também podem ser bem-sucedidos. Desde que coloquem a criatividade como foco prioritário e diferencial estratégico.
Cultura
Uma das grandes missões dos novos líderes oriundos da criação é mostrar que a criatividade não está circunscrita em um departamento e seja mesclada a todas as práticas administrativas que impactam o funcionamento de qualquer empresa. Essa sempre foi a visão, por exemplo, de Hugo Rodrigues, atual CEO e chairman da WMcCann e um dos grandes exemplos dessa tendência. Então CCO da Publicis Brasil, foi convidado em 2010 para ser COO, movimento pouco comum no mercado na época, mas que fazia sentido internamente por seu conhecimento de negócios.
“O nosso core business é a criatividade. Mas a gente esquece que o mercado é muito mais que isso. Temos de entender de processos, tecnologia, planejamento, consumo e compra de mídia. Precisamos respirar o que as pessoas falam, acompanhar as transformações da sociedade, despertar o interesse nos nossos clientes, dialogar com o mercado e, mais do que tudo, trabalhar para que toda essa cadeia se fortaleça”, avalia o executivo.
Ele acredita que a valorização da criação sinaliza a força da inovação como um dos pilares da agência. E a capacidade de inovar é habilidade-chave para qualquer negócio, seja do setor que for. “Contar com alguém que tem a criatividade como instinto é deixar claro que, ao menos, a acomodação e o default não farão parte do dia a dia das entregas da empresa”, diz Rodrigues.
Há dois anos no cargo, o CEO da Talent Marcel, João Livi, destaca que o criativo agrega a capacidade de tangibilização, ou entregar uma tradução simples e carismática para os problemas e questões complexas envolvendo a marca. “A Talent já tinha uma cultura muito forte. Entretanto, alguns processos, metodologias e critérios foram adicionados aos já existentes para gerarmos um produto online consistente. Minha outra preocupação constante é sui generis para um criativo: produtividade. A produtividade sustentável é hoje provavelmente o maior fator de sobrevivência no negócio”.
Marcelo Reis, co-CEO e CCO da Leo Burnett Tailor Made, acredita que o impacto cultural de um líder oriundo da área criativa afeta a cultura da agência e o resultado de negócios dos clientes. “Meu propósito profissional não é ter a agência que mais fatura, mas ter a agência capaz de participar, ao lado das marcas que atende, da positiva transformação comportamental e cultural das pessoas. Só ganhar dinheiro é medíocre. Ganhar fazendo coisas boas e relevantes dá trabalho pra caramba e deveria ser o valor básico de qualquer um que se considere criativo. Os clientes só ganham com agências que pensam e agem assim de verdade”, avalia. “Triste seria um mercado publicitário regido apenas por executivos. Afinal, o profissional de criação traz em sua bagagem o entendimento profundo do produto final a ser entregue: a sutil conexão entre a arte pop e a venda. Ninguém aprende, na sua essência como ser humano, a ser criativo: você é o que você é, mas aprende a ser um grande gestor”, explica.
Reis reforça que as agências criativas têm diferenciais estratégicos que as consultorias e outros players que têm se tornado concorrentes não conseguem acompanhar. “O difícil é transformar dados, números e análises em ideias pertinentes e memoráveis. Quem conseguir fazer isso, não importa a nomenclatura da empresa, merece todo o mérito, mas vai ter de investir muito dinheiro em pessoas criativamente talentosas. Quem inventou essa comparação entre consultorias e agências estava completamente equivocado e, certamente, não era criativo. É preciso produzir muita ideia boa para chegar a uma, dentro do briefing e dos valores de cada marca, que se destaque realmente. A briga é pela melhor ideia, como sempre foi”, analisa.
Sinal
Para Mario D’Andrea, redator de origem e hoje presidente da Dentsu e da Abap (Associação Brasileira de Agências de Publicidade), o grande sinal enviado por quem está colocando criativos como presidentes é a preocupação com a qualidade final do trabalho. “Ao contrário de outras empresas que baseiam seu trabalho em modelos preditivos, a matéria-prima das agências é encontrar soluções inesperadas para supreender os consumidores. E isso chama-se criatividade aplicada a problemas de negócios e marcas. Se for um bom profissional de criação, que tenha visão de que esse é o nosso negócio, que o talento precisa estar a serviço de marcas e clientes, por que não ter a chance de liderar uma empresa?”.
O criativo como CEO, diz D’Andrea, se equipara ao chef de cozinha, que tem grande cuidado com os ingredientes da campanha, os detalhes de acabamento. “Não são condições únicas dessa área, claro. Mas, por ser da área específica, essas questões não passam despercebidas”, avalia.
Outro CEO com background de criação, Erh Ray lidera a BETC com a missão de transmitir a cultura criativa por toda a agência. “A capacidade de gestão de um criativo ocorre principalmente na execução. Ele tem a condição de ver o todo e poder implementar e executar o trabalho final, que é uma solução para o cliente”, afirma Ray. Ele fala que sempre acreditou na visão conjunta de criatividade e na capacidade de gerar negócios para os clientes. “Não fazemos comunicação pensando de um lado só. Esse casamento é necessário e fundamental para o sucesso dos clientes e agências”.
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