Quando você não tem ideia para um comercial, há uma fórmula imbatível: cria alguma coisa com velhinhos, crianças ou cachorros. Funciona mais do que mulher bonita, até mesmo porque mulher bonita está caindo de moda. O risco de parecer machista é alto. O perigo de considerarem você um machista vulgar é alto. Por isso, criancinhas, velhos e cachorros ainda são fórmulas perfeitas.
Na história da televisão não se conhecem reclamações de cachorreiros, velhistas ou criancistas acusando a exploração dessas personagens em comerciais. Mas, conosco aconteceu uma vez um fato inacreditável. Era um cliente sediado numa cidade do interior, cujo departamento de marketing ficava em São Paulo. Uma empresa familiar, administrada com todo profissionalismo, líder de mercado, cujo dono-presidente dava autonomia a seu pessoal, não interferindo no dia a dia dos negócios. Foi nesse clima que desenvolvemos uma campanha cujo astro era um cachorrinho. Não parecido com o Salsicha da Cofap, imorredoura criação do Washington Olivetto, mas toda a campanha se desenrolava em torno das traquinagens de um lindo labrador.
Pois bem, já disse, criamos uma campanha deslumbrante cujo astro era exatamente um labrador preto, um bicho adorável, sensível como uma cantora de ópera, leal, amigo e extremamente simpático. Adorava seres humanos de qualquer idade e se comportava diante das câmeras como um ator profissional, em troca de um cachê extremamente razoável: pequenos pedaços de carne crua. E, apesar de por garantia termos providenciado um dublê, o astro principal se comportou com tal maestria que encantou o elenco humano inteiro, principalmente o câmera, que jurava que, se todos os atores se comportassem igual, sua vida seria um paraíso. A equipe do cliente se sentiu tão segura que autorizou a montagem final antes mesmo de o presidente ver o roteiro, esperando encantar de tal forma o chefão que garantiria a confiança absoluta em futuras produções. E assim foi feito.
Filmamos tudo e nos preparamos para uma verdadeira apoteose na apresentação ao tal dono-presidente. Por problemas de horários de voos, chegamos à cidade-sede da empresa próximo ao meio-dia. E a mulher
do presidente fez absoluta questão de nos receber para um almoço antes da apresentação da campanha. E foi num clima de total confraternização, quase intimidade, que o assunto cachorro surgiu à mesa. Nesse instante, a primeira-dama comentou: “nem toquem nesse assunto!” E completou: “Fulano (o presidente) foi mordido por um cachorro quando era bebê e até hoje não pode ver um animal desses. Começa a suar, passa mal, tem tonturas…”
E, acariciando carinhosamente a mão do marido, completou: “É a única coisa que deixa ele fora de si, um trauma que nem um psiquiatra alemão conseguiu melhorar…” Veio a sobremesa que nós não conseguimos nem tocar (e era uma framboesa cultivada na fazenda do cliente) e eu dei um vexame pedindo whisky após o licor. Duas doses, tomadas sem gelo, para ver se parava de tremer. Tive de abrir o jogo, pois seria ridículo demais dizer que tinha ido até a sede do cliente só para experimentar a torta de framboesa.
Menti diminuindo a participação do cachorro e prometi voltar três dias depois com outro filme. Menti descaradamente dizendo que bastaria uma remontagem e que ele se preparasse para ver uma campanha espetacular na próxima semana. E saímos todos, em desabalada carreira, incluindo a equipe do cliente, que não conhecia essa intimidade paranoica canina do chefão. Ficamos horas no aeroporto (havia só dois voos por dia) e os demais passageiros jamais entenderam quando um dos membros da equipe queria dar um chute num pobre cachorrinho abandonado que vagava pelo aeroporto. Felizmente não acertou, pois, além do prejuízo, estaria com dor na consciência até hoje. Minha única vingança: o filhote do meu cachorro ganhou o nome do produto do cliente. E viveu feliz para sempre. A nova campanha tinha como astro um canário.
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor
lulavieira.luvi@gmail.com