Entrei na livraria e me detive uns dez minutos correndo os olhos por algumas páginas de O Capitalismo do Século XXI, de Thomas Piketty. Pensei comigo: tenho de ler isso. Dei mais uma volta e saí com O Mulato, de Aluísio Azevedo. Não me perguntem por quê. Aliás, me perguntem. Só assim vou tentar entender. Avancei na leitura do livro de Piketty porque estava me parecendo fácil, familiar, girando em torno de temas com que convivo desde criança, filho de fãs de Karl Marx. Na medida em que a leitura evoluía, me afloravam à mente lembranças de comentários dos meus pais, de discursos nas reuniões do Partidão realizadas em minha casa, de rascunhos abandonados sobre a mesa do escritório, de artigos do jornal A Voz Operária e da revista Horizontes, tudo muito presente e absolutamente trivial na vida de um garoto de oito anos.
Estava gostando da ideia de comprar o livro quando começou a me acometer uma preguiça infinita. Eu sei como sou, ia levar o negócio a sério, refletir, ponderar, debater, procurar interlocutores para trocar ideias, fazer postagens no Facebook, provocar coxinhas e mortadelas, me comprometer com o tema até a raiz dos cabelos. Não, não e não! Hoje em dia, não estou a fim de discutir nem se o Bolsa Família é sadio ou um mero gesto populista e eleitoreiro. Muito menos quero entrar numa avaliação macro da injustiça social inerente a concentração de renda. Onde entra o Mulato na história? Entra quando, de saída, me embarca numa nave que me leva para viver num tempo que não vivi, num lugar que não conheci. Como se eu fosse um espírito vagante, pairando sobre São Luís do Maranhão, nos anos 1880. E como é bom ser espírito! Se Pikkety, com seu Capitalismo do Século XXI, me fez voltar 55 anos, Azevedo me empurrou para mais longe, ultrapassou as fronteiras da minha existência, mas não menos hábil (e mais encantador), fez daquele passado desconhecido presença inédita e viva, tão viva como o agora.
Pode um espírito visitar o antes do experimentado como ser vivente? Quero dizer, se eu morrer agora e virar espírito, em tese, devo pairar no presente dos outros seres vivos que vivos estão agora. Mas Aluísio Azevedo bagunça essa lógica, ao me fazer um espírito que visita tempos passados e não vividos, como se presente fossem. Compreendem que vulgar tornou-se o francês Pikkety? Ficou lá remexendo o grande lixão da índole capitalista, tão manjada para quem teve uma educação chamada científica sobre justiça social.
“Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase se não podia sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes; as paredes tinham reverberações de prata polida; as folhas das árvores nem se mexiam; as carroças d’água passavam a todo instante, abalando os prédios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam sem cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho.”. O cara tinha 20 anos quando escreveu isso! Gostaria de saber o que o senhor Pikkety escreveu aos 20 anos.
Stalimir Vieira é diretor da Base Marketing