Nas últimas semanas, o documentário “O Dilema das Redes” (Netflix, 2020) caiu na boca e, ironicamente, virou um dos assuntos mais discutidos nas redes sociais. “Ironicamente” porque o filme faz um alerta que envolve as plataformas digitais e seu impacto sobre a democracia e a humanidade.

A obra mescla cenas ficcionais com entrevistas com ex-executivos de gigantes como Facebook, Google e Youtube. Ao longo da obra, os malefícios das redes vêm à tona, como a polarização, vício, danos mentais, entre outros. Obviamente, a monetização com anúncios também foi problematizada na obra. Mas será que marcas e agências têm responsabilidade ou isso é um problema das plataformas?

Rafael Martins: “São problemas que sempre tivemos” (Divulgação)

“De forma geral, creio que os problemas abordados no filme, no que tange a sociedade, são problemas que sempre tivemos. O que as marcas e agências fazem é usufruir da audiência gerada e do engajamento gerado pelas redes sociais para comunicar seus produtos e serviços. Como sempre foi feito, ou seja, em locais onde se tem uma grande concentração de atenção, é lá que as marcas precisam estar para apresentarem seus produtos e serviços e, a partir daí, criar relações com as pessoas e gerar consumo”, opina Rafael Martins, CEO do Share, empresa de educação voltada para a comunicação.

Andrea Siqueira: “Me sinto extremamente cobrada com a responsabilidade que temos nas mãos” (Divulgação)

Para Andrea Siqueira, diretora executiva de criação da BETC/Havas, a indústria da publicidade precisa ter responsabilidade com as mensagens que propaga. “É nossa obrigação não perpetuar estereótipos e clichês negativos sobre determinados assuntos e comportamentos da sociedade. Sou mulher, sou mãe, sou baiana, além de publicitária, e me sinto extremamente cobrada com a responsabilidade que temos nas mãos”, revela.

Márcio Jorge: “Existe uma grande responsabilidade por parte de marcas e agências” (Divulgação)

Já Márcio Jorge, diretor de inteligência da Zahg, avaliar se marcas e agências são parte do problema apresentado na obra é complexo, pois vários problemas são exibidos. “O que entendi como problema central foi a questão da audiência e do comportamento das pessoas nas redes sociais sendo utilizados como moeda de venda, ou seja, os dados das pessoas serem mercantilizados dentro dessas plataformas. Neste sentido, sim, existe uma grande responsabilidade por parte de marcas e agências uma vez que são elas que, na maioria das vezes, compram esses dados”, opina o executivo.

Quando as marcas necessitam dessas informações para terem mais performance de vendas, explica Jorge, existe um pensamento de desenvolvimento do algoritmo que impulsiona uma mudança na maneira de consumo – e até de pensamento dos usuários de redes sociais – com o objetivo de favorecer as marcas, ou seja, de tornar o ambiente mais “fácil” e “fértil” para que elas vendam seus produtos para essas pessoas. “E pode ser um produto, um serviço e até mesmo um objeto social, de cidadania, como o voto, que foi o que mostraram no filme – o poder do algoritmo de mudar a percepção do usuário para que ele vote no candidato A ou B. Então, considerando que os dados são um grande produto ‘à venda’ nas redes sociais, sim, as marcas e agências são responsáveis pelo entendimento de como esses dados devem ser trabalhados dentro dessas plataformas”, opina Jorge.

Vitor Barros, CEO da Propeg (Divulgação)

Já Vitor Barros, CEO da Propeg, analisa que anunciantes precisam saber onde e como suas marcas estão sendo utilizadas. “Cabe às agências o papel de obter as informações dos veículos para que possam dar transparência aos seus clientes. Uma boa comunicação é construída quando existe parceria e transparência entre cliente x agência x veículo. O que o documentário traz é aquela coisa que todo mundo sabe mas finge não saber, pois o mundo hoje está tão conectado que, enquanto consumidores, também somos usuários fervorosos das redes sociais. Elas se tornaram parte da vida das marcas e não há como uma marca não estar nas redes sociais”.

Questionado se anunciantes devem cobrar atitudes das plataformas para que os algoritmos sejam menos nocivos ao público, Martins acredita num “papel fundamental” destas empresas, já que, de uma forma geral, são eles que financiam as big techs. “Vimos movimentos como o #stophateforprofit indo nesta linha, mas mesmo sendo um movimento com força, pouco afetou o Facebook, pois ele ganha o maior dinheiro com os pequenos e médios anunciantes, que na maioria das vezes não se engajam com causas neste nível. Mas a cobrança por parte dos anunciantes é muito importante para que possamos discutir como criar ambientes sociais digitais menos tóxicos”.

Jorge também cita outro caso emblemático: Sleeping Giants, que mostrou marcas que foram parar dentro de páginas de conteúdos completamente inapropriados – com discurso de ódio, racista, fundamentalista etc. “Enfim, uma série de assuntos que a ética comum diz que uma marca não deveria estar associada. Isso acontece porque o algoritmo vai colocando os usuários dentro de ‘bolhas’ de pensamento, de comportamento, e aí ele determina qual a bolha mais ideal para aquela marca estar representada. Assim, o anunciante acaba se tornando um refém dessa decisão do algoritmo e, para que ele não seja prejudicado por isso e evitar esse tipo de situação, na qual perde-se o controle da manipulação do comportamento daquele público, o anunciante precisa, sim, cobrar uma atitude da plataforma.”

Deletar?

Mas será que, para garantir mais privacidade, os brasileiros estariam dispostos a abrir mão dos benefícios que as ferramentas digitais oferecem? Um estudo realizado neste ano pela Kaspersky mostra que a maioria se sente confortável em compartilhar dados para conseguir vantagens.

De acordo com o levantamento, 80% dos brasileiros aceitariam expor seus perfis em redes sociais para encontrar amigos de longa data. Já 70% o fariam sem problemas se o propósito for obter descontos em compras online. A maioria também diz não se importar com a devassa à sua privacidade desde que, em troca, ganhe experiências exclusivas (65%), garanta um bom imóvel para alugar (55%), tenha um monitoramento de segurança em viagens (50%) ou no cartão de crédito (44%), ou ainda obtenha um visto para outro país (49%). Mais de um terço (37%) estaria satisfeito caso um governo rastreasse atividades nas mídias sociais para manter os cidadãos seguros.

Será que um profissional da publicidade pode diminuir o uso das redes? Os entrevistados revelam suas estratégias: “Não cheguei a deletar, mas ‘hibernei’, desativando por alguns dias. Como estar nas redes sociais é importante para entender o movimento das marcas e dos consumidores, sigo lá, mas diminuí bastante o uso em muitas redes e o que faço hoje é usar o recurso de timer do celular, que ‘encerra’ o uso entre as 22h da noite e 7h da manhã”, explica Agatha Kim, diretora executiva de estratégia também da BETC/Havas.

Agatha Kim: “Senti falta de vozes mais diversas nas entrevistas” (Divulgação)

A executiva levanta pontos importantes sobre o documentário. “Senti falta de vozes mais diversas nas entrevistas, uma vez que 100% das pessoas que falaram do lado das plataformas eram pessoas brancas, e apenas uma mulher branca. Outras pessoas do mundo da tecnologia, de grupos minorizados e que falam como as plataformas também aumentam a desigualdade social e racial, não estavam presentes. Como, por exemplo, a Safiya Noble, autora de ‘Algorithms of Oppression’, Ruha Benjamin, de ‘Race After Technology’ e Virginia Eubanks, de ‘Automating Inequality'”, explica.

Sua colega de agência, Andrea Siqueira, diz que gosta do Instagram, mas confessa manter as redes pelo lado profissional. “Ser mãe de um adolescente de 14 anos e de uma menina de 8 anos é o meu job mais difícil. As aulas virtuais, por exemplo, provocaram um aumento no tempo de tela aqui em casa e precisamos exercer um controle ainda maior.”

Futuro

O documentário não é lá muito animador. A impressão que dá é que o futuro será apocalíptico e que as redes sociais irão destruir a humanidade contemporânea. Será mesmo? “Acho que o futuro nos reserva um debate sobre como vamos fiscalizar, medir e controlar o que as redes sociais usam das pessoas e como isso afeta o seu dia a dia”, prevê Martins.

Para Barros, a transparência será cada vez mais será demandada pelos usuários. “O assunto está esquentando e ‘The Social Dilemma’ põe lenha na fogueira.  A discussão é importante, tanto para plataformas que querem ser relevantes por um longo período, quanto para usuários, agências e marcas que interagem e usam a plataforma. Muitas plataformas não duram, mas percebo que as que forem fiéis ao seu propósito inicial e estiverem abertas à transparência com todos os elos da cadeia, tendem a ser as preferidas dos usuários”, reflete.

Segundo Agatha, estamos nos encaminhando para um ponto de virada nas redes sociais, visto que elas têm se tornado uma ferramenta política poderosa. Dessa maneira, será necessário que as coisas melhorem, e que as plataformas encontrem jeitos de conter a sua escalada como veículos de discurso de ódio e fake news. “Ainda sou uma entusiasta das redes sociais, mas a ‘growth strategy’ delas, certamente precisa ser mais focada em crescimento interno – como garantir modelos de mais transparência e ética para seus usuários – e não mais externo, de dominação mundial”.

Já Márcio Jorge acredita que, se nada for feito, se não houver nenhuma determinação governamental, regulatória, essa relação que o algoritmo tem com o comportamento das pessoas vai se tornar cada vez mais complexa e a manipulação dos dados será ainda maior e mais agravada.

“O filme diz uma coisa que me fez pensar profundamente sobre isso. Eles colocam que, hoje, os jovens que estão nas redes sociais são a última geração de pessoas que conheceram o mundo antes da existência das redes sociais. Existe uma geração que está nascendo agora que não saberá o que é viver sem redes sociais. Essas pessoas já nasceram dentro dessas redes, dentro da ‘Matrix’, e isso é muito preocupante”, reflete.

E você? O que achou do filme? Comente.