Para um jornal de João Pessoa eu sou um gay assumidíssimo. A história é velha, de um tempo que nem se pensava em oficializar o casamento gay. Mas vale ser relembrada, até porque se trata da união estável de dois colaboradores do PROPMARK, órgão (epa!) reconhecidamente vanguardista, alinhado com os mais avançados comportamentos sociais. Nossa união estável mereceu reconhecimento na primeira página do maior jornal local na época. Explico. Há muitos anos a Universidade da Paraíba promoveu um evento que mobilizou toda região, voltado para o futuro das comunicações. A história tem mais ou menos 20 anos, o que explica não existir mais o tal jornal, cujo fechamento não foi previsto em nenhum dos acalorados debates que se seguiram às palestras. Aliás, que eu me lembre, nada do que está acontecendo no universo das comunicações foi sequer cogitado durante o evento.

Não se trata de uma crítica, pois no começo do ano dois mil, duas décadas atrás, ninguém ousava imaginar os rumos que tomariam o mundo, a imprensa e a indústria da comunicação. Quem iria imaginar o que está acontecendo? Previa-se, sim, um impacto muito grande das novas tecnologias, mas teria sido expulso às gargalhadas quem tivesse a ousadia de descrever o mundo tal qual se encontra hoje. Principalmente na área da comunicação. Pareceria delírio no início do milênio descrever o que atualmente uma pessoa comum tem à disposição para conectar-se. Há 20 anos o que é corriqueiro seria considerado ficção científica, pendendo para o absurdo. Mas voltemos à deliciosa cidade de João Pessoa. Como já disse linhas atrás, a universidade promoveu tal seminário que, segundo o jornal, trouxe personalidades importantes para discutir os novos horizontes. E citava os nomes desses ilustres convidados. Javier Cluret, Marily Raphul, Regina Augusto e… Lula e Stalimir Vieira. Um casal, como se vê. O Stalimir deve ter ficado tão preocupado com a imagem dele (provavelmente por estar casado comigo) que desapareceu no domingo anterior ao início do evento. Provavelmente de medo de o jornal local noticiar que o casalzinho foi visto curtindo o por do sol na beira do Rio Sanhauá. Foi a primeira vez que fui abandonado por um marido. Ainda bem que minha mulher viajou comigo, mas confesso que me senti um pouco esquecido. Ele poderia ter deixado um recado na portaria do hotel… Ontem, arrumando velhos papéis, encontro alguns materiais impressos relativos ao evento. Já começa com o fato de serem papéis impressos, algo hoje considerado completamente fora de moda. Em tom eufórico, se discutiu o inacreditável mundo novo que se avizinhava. E a imaginação dos redatores dos folhetos promocionais perdeu os freios, indo em alguns casos ao delírio. Parece incrível, mas o que era descrito como um futuro ficcional, hoje já está velho. E falo inclusive dos modelos de negócio que a tecnologia ajudou a criar.

Em 2000, a indústria do cinema apenas antevia a possibilidade de as pessoas assistirem em casa os lançamentos, mas sempre tinham o cuidado de estabelecer uma “janela” que retardasse o acesso doméstico, para que não fosse afetada a economia de todo sistema. Se alguém naquele tempo cogitasse que não só seriam comuns os lançamentos simultâneos como, em alguns casos, algumas produções estreariam no streaming seria considerado insano. Pura loucura, economicamente inviável. Mas já que abri os portais da saudade, me permitam ir fundo. Não sei agora, mas havia um evento diário ao fim do dia nas margens Sanhauá. Quando o sol se punha, dando um tom dourado ao rio, que naquela área parece realmente um espelho, um barco era posto n’água conduzindo um saxofonista. O som do instrumento, amplificado, atingia toda a orla. As pessoas sentadas no chão, ou nos inúmeros bares, faziam um silêncio de igreja, num clima de magia emocionante. Todos ficavam petrificados, mesmo os da terra, que deveriam estar acostumados. Que eu me lembre era um encantamento o espetáculo propiciado pelo sol, pelo rio e pela música. Tecnologia nenhuma é capaz de reproduzir um evento como esse, onde o cheiro, o levíssimo ruído de fundo produzido pelo murmúrio das águas, o gorjeio de pássaros vespertinos faz parte da função. Hoje nem sei se ainda existe esse evento, mas nunca mais esqueci. Nem do fato que foi lá que, pelo menos na manchete de um jornal, Stalimir e eu fomos casados.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)