James Blake é talentoso e otimista. O aclamado músico inglês declarou durante o Festival de Cannes que “o algoritmo quer quantidade, mas a alma quer significado”.

Frase bonita. Daquelas que cabem perfeitamente na capa da relação dos prêmios de Cannes, no feed do LinkedIn ou no slide final de qualquer keynote que deseje soar sensível e antenado.

Se isso é mais do que sublime poesia, aí já são outros quinhentos. Porque, como perguntariam as madames com nariz de cadáver, de Nelson Rodrigues, num estádio de futebol, “quem é a bola?”, eu pergunto: “quem é a alma?”

É aí que o discurso começa a balançar. Porque a tal da alma, que demandaria “significado”, essa entidade escorregadia e conveniente, no fundo, não passa de uma espécie de segmentação. Uma segmentação altamente rentável, diga-se.

Se James Blake deixa no ar quem ela é, e se contenta com um romantismo agradável, o mercado se encarrega do que interessa. E responde do jeito com que sabe fazer melhor: transformando qualquer angústia existencial em proposta de valor escalável. Aliás, poucas matérias-primas são tão valiosas hoje quanto a ansiedade por sentido.

Porque, convenhamos, vender sapato, hambúrguer ou carro é coisa fácil. O que dá trabalho, e dá prestígio, é vender o tal do significado. “A alma em busca de significado” é um conceito brilhante, que já nasce pronto.

Poderia ser da Tesla, da Natura ou de uma startup de impacto. E é aqui que a poesia de Blake revela sua natureza: ela não rompe com nada, não questiona o sistema, não desconstrói algoritmos. Ao contrário, ela opera como uma espécie de indicador de posicionamento. Quando Blake opõe “algoritmo” a “alma”, ele não está definindo dois mundos. Está apenas descrevendo dois mercados. Um movido por conveniência, outro por consciência. Ambos organizados, estruturados e previsíveis.

A diferença? Nenhuma, no plano da lógica. Ambos querem pertencimento e ambos querem validação, em linguagens diferentes, scripts diferentes, embalagens diferentes. O algoritmo quer quantidade, ele diz. É uma avaliação ingênua. O algoritmo, de fato, na teoria e
na prática, quer tudo. Inclusive sua ânsia de não ser apenas mais um, seu desejo por profundidade, autenticidade e propósito.

E ele entrega, sob demanda. Com storytelling, selo ESG e carbono neutro. Porque sim, a “alma” é um target óbvio, ainda que premium. Bem informada, financeiramente confortável, culturalmente atualizada e, sobretudo, ansiosa por não ser percebida como massa, enquanto consome exatamente aquilo que o mercado preparou para a sua bolha.

Para o mercado, tanto faz se você compra um Big Mac ou uma jaqueta feita de algodão regenerativo e garrafa PET reciclada. Ambos são experiências e narrativas. Ambos oferecem conforto, seja ao estômago, seja à consciência. E funcionam perfeitamente não por acaso, mas por método, algoritmo e por estratégia de branding aplicada, testada e validada.

A frase de Blake não é uma denúncia, sequer uma descoberta. É apenas um exercício criativo com a ilusão de que alguma condição particular seja capaz de nos fazer “imunes” ao algoritmo. Quando o que realmente ocorre é que vender a “certeza” de que não estamos sendo vendidos se tornou um baita negócio.

Stalimir Vieira é diretor da Base de Marketing
stalimircom@gmail.com