A Fazenda 14 tem gerado inúmeras discussões dentro e fora do confinamento. Lá dentro, vemos peões com discursos pré-fabricados e ensaiados de pautas importantes da sociedade para, simplesmente, desqualificar os oponentes enquanto que os reais Direitos Humanos são desvalorizados como esterco. E há uma cegueira para as relações interpessoais e para as regras de convivência entre os participantes e, também, por parte da produção da atração que prefere ser isenta. Daqui de fora, vemos parte das pessoas indignadas com a maldade humana sendo normalizada e, parte delas, achando o máximo ser representada na telinha.

Um reality show é, como o próprio nome diz, a apresentação da realidade. E o formato exibido em vídeos é a reprodução e representação dessa realidade. A isso damos o nome de imagem. Reality não é obra de ficção com roteiros e falas inventadas, reproduzidas ou fantasiosas. Ali, não têm personagens! Os personagens estão nas tramas bíblicas da emissora. A Fazenda tem pessoas com histórias, discursos e vivências reais. Isso é óbvio, mas, diante da cegueira coletiva, não custa nada relembrar. Por sua vez, o vídeo é a técnica de reprodução eletrônica de imagens em movimento ou um conjunto de dispositivos que reproduzem a imagem transmitida. Ou seja, o que temos em A Fazenda é uma imagem clara do que é a nossa realidade.

E, como percebemos na reprodução dessas imagens, os crimes de discurso de ódio não aumentaram apenas na tela mas, também, na nossa vida real. É o que confirmam os indicadores da Central Nacional de Denúncias da Safernet e divulgados há apenas um mês: o número de denúncias aumentou de 26% para 654% no primeiro semestre de 2022 em relação ao mesmo período de 2021. A Central, que recebe denúncias de 10 crimes contra os direitos humanos praticados com o uso da internet, mostrou que houve mais denúncias de racismo, LGBTfobia, xenofobia, neonazismo, misoginia, apologia a crimes contra a vida e intolerância religiosa.

Enquanto isso, na TV, vemos com nossos próprios olhos palavras soltas ao vento como “Gazela”, “Volta para o teu país, nojento!”, “Ele vai ver se eu não queimo ele com cigarro”, “Quem quer se matar, se mata”, "Quero que você fique mais uma semana pra eu ver se você toma mais uma cartelinha de remédio“… E por aí vai.

O que começou com xingamentos foi dando espaço para falas cada vez mais vulgares, esbarrões, crimes contra a honra, abusos psicológicos, ameaças e até o crime de indução ao suicídio.

Em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que casos de homofobia e transfobia se aplicavam na lei que trata do racismo, fazendo, assim, com que a homofobia seja considerada crime. E o que determina a Lei 7.716/2018 (crime de racismo)? Em seu artigo 20 está escrito que é crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa”. E o Artigo 147 do Código Penal classifica ameaça como crime: “ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave”. Como também, em seu artigo 122, é claro que induzir outros ao suicídio é crime contra a vida e consiste em "provocar, incitar, induzir ou estimular alguém a suicidar".

E, nós vimos nos últimos dias, vários participantes com condutas reprováveis e lesivas à sociedade. Ameaças de tortura física e psicológica bem como incitação ao suicídio, por exemplo.

A Fazenda é um programa conhecido por seus barracos. Mas, isso não tira o poder da lei de estabelecer regras de comportamento dentro de uma sociedade. Embora o reality show da Rede Record tenha suas regras específicas, a “república de Itapecerica da Serra" ainda é território do Brasil e não está imune a aplicação dos direitos e deveres brasileiros.

Os crimes de ódio não são "exclusividade" dos haters escondidos nas redes sociais. Vemos isso nas ruas, em casa e, agora, claramente, nas telas de programas de “entretenimento”. É um coice violento no estômago de todos nós brasileiros porque mostra exatamente a nossa imagem real espelhada diariamente na TV. O nosso lado mais brutal e que eu jamais chamaria de animalesco porque os animais são mais dóceis do que aqueles que maltratam até a própria espécie. Para domesticar o bruto ser humano é preciso educação e lei. Essas são as rédeas que nossa espécie precisa usar, urgente. O castigo das boas normas sociais tem que vir a galope.

Luciéllio Guimarães é estrategista de Brand Image, professor universitário e palestrante