Ainda que ninguém escolha CEP, família, raça, gênero ou deficiência para nascer, estes fatores podem ser determinantes para o futuro de uma criança, em especial no Brasil, segundo país mais desigual do mundo.

“Como se faz para melhorar de vida?” é a pergunta que mais escuto, e a resposta que dou é “com herança”. Quando você nasce, pode herdar da sua família quatro tipos de capital. O capital financeiro, que paga para você ter acesso a educação de qualidade. O capital intelectual, onde pais graduados desenham um projeto robusto de educação que inclui arte, cultura, esporte etc. O capital social, famoso networking, rede de apoio dos pais e familiares que abrirão portas para todo o tipo de oportunidade, como o primeiro emprego e tudo mais para alavancar a sua carreira. E, por último, o capital moral, com valores, comportamentos positivos, mindset de pertencimento, confiança e crescimento que são transmitidos de 0 a 12 anos pela família.

Dito isto, se você nasceu em uma família pobre, negra, periférica ou sem nenhuma herança, as estatísticas não são boas. Filhos de famílias pobres têm só 2,5% de chance de chegar ao topo no Brasil. Se nasceu pobre, demora sete gerações para alcançar a classe média (Gappe-UFPE 2022).

É vergonhoso viver num país, onde a pessoa precisa ser um herói para melhorar de vida. Eu conheci pessoas medianas em outros países, que nasceram nas classes mais pobres, mas não precisaram ser heróis para terem uma vida digna. Essa reverência aos heróis que furam incontáveis barreiras, só serve para manter o status quo desta meritocracia injusta, que leva em consideração talento, esforço, desempenho, resultado, mas nunca equidade no acesso às oportunidades.

Eu nasci em Caxias, periferia do Rio de Janeiro, numa família pobre e negra. Não herdei capital financeiro, intelectual ou social, mas tive o privilégio de nascer numa família estruturada que me transmitiu valores morais sólidos, como honestidade, trabalho duro, empatia, solidariedade etc. Além disso, agradeço o talento da curiosidade e a sagacidade do subúrbio, que me tornaram um leitor ávido e autodidata, de maneira que superei os desafios da qualidade do ensino público, hackeando o sistema em busca de oportunidades de educação de qualidade gratuita. Afinal, se você nasce pobre, perde o direito de ser bobo, e, navegando nas brechas do sistema, consegui aprender inglês aos 12 anos com bolsa de estudo, fui o primeiro da família a pisar numa universidade pública, construí uma carreira de sucesso na indústria de tecnologia e, assim, ascendi a classe média alta.

Duas coisas foram fundamentais para me inspirar e despertar a minha gana por vencer. A primeira razão foram os meus pais. Acredito na filosofia Ubuntu “Eu sou porque nós somos”. Então, se eu conseguisse cruzar a linha de chegada para me tornar classe média, esta, com certeza, seria uma corrida de revezamento, onde meus pais e todos os ancestrais que vieram antes colaboraram para a vitória. E meu maior orgulho foi poder compartilhar os bons frutos desta jornada vitoriosa com eles.

A segunda razão foram os livros, que me salvaram. Meu pai era professor, então sempre tinha livros em casa. Eu me lembro bem da coleção de livros de aventura Vagalume, que despertou o meu gosto pela leitura aos 8 anos. Aos 12 anos, um livro usado, Negras Raízes, do autor Alex Haley, me escolheu e mudou minha vida para sempre. O livro, que conta a história de Kunta Kinte e seu povo Mandinga, fala de escravidão, diáspora africana, segregacionismo, racismo, mas também de resistência, ancestralidade, identidade e luta.

As centenas de páginas desse livro fizeram eu me reconhecer negro num país racista, que inferioriza o negro, o trata como serviçal, submisso, subalterno e não confiável. Além de despertar minha paixão pelas biografias. Já li sobre Malcom X, Martin Luther King, Gandhi, Mandela, Che Guevara, Fidel Castro etc.

O grande barato das biografias é descobrir o lado humano e vulnerável dos mitos. Entender que na jornada do herói tem um momento crítico onde você precisa abraçar o seu destino, ter coragem e ousadia para executar a sua missão, e o talento para mobilizar milhares de pessoas por uma causa.

É inegável que essas personalidades incríveis sempre me inspiraram, e hoje eu vivo o propósito de abrir os caminhos para desenvolver uma nova geração de líderes jovens do Brasil. Acordo todos os dias com sentimento de ser um servidor da minha pátria, emprestando meu tempo, energia, conhecimento e recursos para criar um país mais justo, menos desigual e mais inclusivo.

Leizer Pereira é palestrante, fundador e diretor-executivo da platafoma Empodera