Em época de unificação global da comunicação, o mundo vira a nossa aldeia. E, para mim, Cannes Lions cada vez mais se parece com o clube da cidade de José Bonifácio que conheci um dia, ali no centro da cidade, ao lado da sorveteria do Zé Tomate e perto da Escola Estadual Severino Reino. É muito prazeroso ver a comunidade global se encontrando, trocando ideias e daí você dá os descontos: tem os filhos de fazendeiros, os herdeiros de famílias importantes que não construíram nada, só continuam a fazer o que a família sempre fez com o dinheiro que herdou. Mas alguns são legais, outros nem tanto, mas estão ali.
Nesse clube tem também os atletas que se infiltram sem pagar o título. Só com o talento. Dando um jeito. Também tem os filhinhos de papai que fazem o que querem na cidade e dão a carteirada: sabe com quem você está falando? E os rebeldes, que tumultuam o status quo. Você precisa encontrar a sua turma e, de preferência, seguir interagindo e se divertindo.
Uma das críticas mais capiciosas e interesseiras que ouço sobre Cannes é que a boa ideia regional e de linguagem local não consegue se destacar por lá. Apenas as feitas para o festival. Se isso fosse verdade não haveria um outdoor gigantesco do Washington dentro do Palais contando ao mundo sua importância, como teve este ano. E acho uma visão estreita sobre o mundo comunicante que estamos vivendo agora. Então, separei algumas ideias com as quais fiquei encantado pela simplicidade e poderiam ter sido feitas em qualquer aldeia, inclusive aqui, na nossa.
Algumas ideias lá do clube de Cannes. Aumenta o preço! Em época de inflação, teve um mercadinho metido a besta que congelou os preços e, para divulgar isso, foi ousado. Resolveu dizer que tinha o menor preço. Não sobrou dinheiro para comprar muito espaço de propaganda, mas ele tinha uma marca própria. Fez o quê? Tirou a própria marca da embalagem e imprimiu bem grande o preço daquele produto. Quem faz isso não vai subir os preços a toda hora, não é mesmo? E todo mundo entendeu essa verdade. A marca própria vendeu mais que as marca-marcas.
Teve também o causo da passagem de trem. O pessoal costumava entrar no trem sem pagar, daí, para incentivar a compra de passagem, passaram a fazer uma loteria com o número da passagem. Quem comprava um ticket de trem estava, na verdade, com um ticket de loteria e concorria a prêmios em dinheiro. O pessoal não gosta de pagar passagem, mas adora uma fezinha. Vale para Índia, para José Bonifácio.
E para o problema sério de agressão à mulher, uma seguradora resolveu se comprometer, foi lá e colocou no contrato de seguro três palavrinhas a mais na cobertura de sinistros: agressão a mulher. Em caso de agressão à mulher, o seguro (feito pelo agressor) cobriria um lugar para a mulher ficar. Essa ideia então foi direto onde as pessoas mudam o comportamento: o bolso.
Teve uma outra muito boa do fabricante de Vaselina, que decidiu pegar na mentira todos os vídeos que estão nas redes usando seu produto. Daí criou um time de cientistas para verificar o conteúdo de cada um, se era mentira ou verdade. E saiu por aí dando troféus para quem falava a verdade e avisando a audiência quando o uso do produto não era correto ou colocava em risco as pessoas. Tão simples e tão bom.
Ideias tão boas que parecem até propaganda brasileira, da boa, feita aqui. Aliás da Vaselina, inclusive, foi o Grand Prix que o Marco Versolato ganha todo ano lá para Asia, onde trabalha. Cada vez que encontrava ideias assim, lembrava da aula da Maria Carmem sobre comunicação, abordando o filósofo canadense Marshall McLuhan, que na década de 1960 criou o conceito de aldeia global. Aconteceu simplesmente. Eu canto a minha aldeia e o mundo ouve. Mas é preciso escutar também. Lá no clube do Centro de Bonifácio, ou em Cannes, já não sei mais, você precisa encontrar a sua turma. Aturando os herdeiros, se esquivando dos valentões, mas se divertindo no meio de muita gente boa. Ou encontrar outro clube.
Flavio Waiteman é sócio e CCO da Tech&Soul
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