Sempre fui uma entusiasta da tecnologia, da promessa de democratização do acesso. Entrei no mercado audiovisual pela pós-produção, em 1998, numa época em que ainda estávamos migrando do analógico para o digital.

Naquele tempo, os estúdios que conseguiam investir importavam equipamentos de alto custo. Estamos falando de sistemas de correção de cor como os telecines Diamond, C-Reality, que chegavam a custar um milhão de dólares, ou das mesas de mixagem como SSL, Neve. Câmeras de cinema 35mm, película, insumos ópticos, era um mercado de poucos, concentrado e altamente técnico.

Trabalhar com produção e pós-produção era quase um passaporte para um círculo fechado. As oportunidades estavam nas grandes estruturas.

Mas a intermediação digital eliminou etapas caras. As salas de cinema se modernizaram. A tecnologia barateou. E a concentração se dissolveu.

O que antes era exclusivo das casas de pós-produção e locadoras, passou a ser possível para as produtoras que começaram a adquirir os próprios equipamentos e depois vieram os freelancers.

A pandemia acelerou esse processo e oficializou o que já estava acontecendo: o estúdio foi para casa. E o conceito de “empresa de garagem” virou realidade.

Isso nos leva a um outro ponto-chave: a distribuição e curadoria do que consumimos.

Durante décadas, grandes emissoras e gravadoras ditaram o que o público via, ouvia e conhecia. Plataformas, como o YouTube, mudaram isso.

Artistas independentes puderam mostrar seu trabalho, e o algoritmo passou a influenciar quem era visto, descentralizando a curadoria.

Sou grata a essa liberdade, graças a ela que montei a minha produtora de som e criei uma plataforma de streaming.

A queda de monopólios abriu espaço para diversidade e nichos, para a segmentação baseada em afinidade. Porém, essa liberdade trouxe dilemas.

A qualidade caiu? As músicas ficaram mais rasas? A arte perdeu sua profundidade?

O conteúdo do mainstreaming faz com que quase tudo seja produzido com base em algoritmos do que é mais visto, criando uma cadeia de “mais do mesmo”. Questionamos se há um empobrecimento de conteúdo.

Talvez seja o retrato mais cru do gosto médio. Quando a curadoria está nas mãos do público, refletimos seu desejo real, então surge a questão: estamos formando público?

A resposta está na carência de educação cultural, artística e crítica no Brasil. A escola não ensina gestão financeira, história da mídia, a real liberdade de escolhas religiosas e o pensamento crítico, pois a ignorância serve ao poder. A massa de manobra precisa continuar maleável.

A internet, ao ampliar vozes e culturas, ameaçou romper esse ciclo, mas os poderes reagiram, escondendo métricas e algoritmos, revertendo o eixo para o controle.

Hoje, a curadoria é obscura e automatizada, moldada por interesses comerciais ou políticos. Adeus, liberdade digital. Bem-vindo ao novo controle.

Voltamos à curadoria controlada pelas bigtechs detentoras dos algoritmos das redes sociais.

Diante disso, muitos buscam uma forma alternativa de resistência: a curadoria do vínculo. Optamos por comunidades fechadas, grupos de WhatsApp e redes segmentadas de confiança.

A internet será filtrada, não para alienar, mas para proteger. Bolhas se tornam espaços de confiança e vínculos reais em meio ao ruído e à manipulação. Estamos dando um undo na globalização? Talvez.

Estamos retornando a um digital mais afetivo, tribal e seletivo. É um movimento híbrido em que o acesso à informação continua valoroso, mas precisa ser temperado pela confiança.

Pela referência. Pela intimidade. Não abandonamos o mundo, apenas colocamos filtros. E, nessa nova fase, curar vínculos é tão importante quanto curar conteúdo.

Enquanto lutamos por transparência nos algoritmos, ética na tecnologia, na IA e investimento em educação, recriamos grupos de confiança e conversas seguras.

Talvez nesse gesto silencioso e resistente, estejamos construindo a base de uma nova era digital: não mais a viralização, mas a era da curadoria do vínculo.

Bia Ambrogi é presidente da Apro+Som
bia.ambrogi@apromaissom.org