O título do livro: 'Fumar é bom para você' me chamou a atenção na prateleira do sebo no centro de São Paulo. Depois de passar uma parte importante da carreira fazendo campanhas antitabagistas para o Ministério da Saude,  resolvi dar uma olhada nesse conteúdo. Comprei o livro. (Sim, o polêmico rato na embalagem foi sugestão criativa). O livro editado pela Record em 1979 trazia a versão de que o câncer associado ao cigarro era uma falácia.

A Wikipedia me avisa que o autor, o dr. William Whitby, foi um médico australiano meio doido e ingênuo, usado espertamente pela indústria do cigarro de diversos países para causar, digamos assim, uma certa confusão (fake news) sobre se o cigarro causava câncer ou não. Durante cinco décadas esse tema foi debatido até que nos anos 1990, apesar de todos os lobbys e campanhas de contrainformação, foi confirmada sua letalidade e as empresas tabagistas precisaram se adequar, pagar multas, reduzir a comunicação e dizer finalmente que aquele produto fazia mal para a saúde. A verdade demora, mas vem.

Ao ler o conteúdo do livro me veio à cabeça o mundo que estamos vivendo hoje. E algo muito similar: o ambiente digital. Deixar claro aqui que não existe mais “digital”. Você não pede um carro digital no aplicativo. Não pede comida digital de entrega. É transporte, é refeição, é a vida. Com o cigarro, a subtância que viciava era a nicotina. Hoje em dia a substância é a dopamina que aparece quando a sua “bolha de audiência” dá um like num post, ou quando o algoritmo entende a sua busca e lhe serve aquilo que você queria ver. É clínico. Ambas viciam e dão uma sensação de prazer. No caso da nicotina, o pacote desagradável eram as substâncias cancerígenas. E no caso da dopamina, o legado é o mundo que vemos hoje que permite ao Putin mentir para a população e ela acreditar, que não está havendo uma guerra e a Europa é dominada por ditadores. De pessoas esclarecidas acharem que a vacina faz mal, ou que máscara não adianta. Enfim. Imaginei que existe uma fúnebre semelhança entre os modelos de negócio. Uma droga (nicotina ou dopamina) em conjunto com muita comunicação e uma distribuição ilimitada pode causar hábito, dependência e gerar muito lucro para algumas empresas. E a defesa de ambas era a mesma: liberdade de fazer o que quer, de ser quem é e dizer sua opinião. Corta para a música Revolution, dos Beatles. É muito semelhante.

Abordei o tema, pois estamos prestes a votar a Lei contra as Fake News. E tenho visto o STJ apertando o cerco sobre as postagens falsas, anônimas, grupos de ódio em aplicativos etc. Eles estão tentando tirar um pouco do poder viciante que existe sobre mim, sobre nós e sobre o nosso futuro. No caso do cigarro, além das tragédias pessoais e familiares de 200 mil pessoas que morriam todos os anos, apenas no Brasil, havia o colapso da saúde pública inchada pelas sequelas do fumo. Uma conta que todos pagamos, apesar de o vício ser apenas de alguns. Agora o mal são as famílias divididas, atraso social, econômico, ambiental e uma democracia na UTI. Entre outros e todos, absolutamente todos pagamos essa conta.

As grandes corporações agora, assim como houve na época do cigarro, precisam deixar a eterna adolescência permissiva em que vivem. Afinal, são veículos de comunicação, remunerados por publicidade e audiência e não apenas movimentos sociais libertários. As empresas anunciantes, os clientes das agências,  precisam ter certeza de que o ambiente é regulado, sério e ético, como deve ser um veículo de comunicação. A responsabilidade está batendo à porta e uma sociedade esclarecida sobre o tema pode fazer com que a mudança ocorra. Que não demore 50 anos para que isso aconteça. Não temos esse tempo.

Flavio Waiteman é CCO/Founder da Tech and Soul
flavio.waiteman@techandsoul.com.br