É possível repensar a nossa sociedade a partir de outros valores? Movidas por esta pergunta, iniciamos a jornada que se encerrou com a estreia da série “Sociedades matriarcais” este semestre, no GNT. Tudo começou com a leitura de “O reino das mulheres”, livro do jornalista argentino Ricardo Coler sobre os Mosuo, uma sociedade matriarcal chinesa que ainda resguarda muito de sua tradição e cultura ancestrais, apesar do contato com a globalização e com o turismo. Ler sobre a cultura dos Mosuo nos despertou para conhecer e entender mais sobre diferentes maneiras de existir como mulheres no mundo, principalmente no que tange às relações de gênero, que em uma sociedade matriarcal se dão de maneira mais equilibrada. Começamos, então, a dar forma à série. Iniciamos uma extensa pesquisa, que durou alguns anos e envolveu uma antropóloga e pesquisadores locais, para conhecermos as sociedades e as personagens que seriam as protagonistas dos episódios. Depois de muita pesquisa, definimos as quatro sociedades que visitaríamos: os Minangkabau, na Indonésia; os Khasi, na Índia; os Bribri na Costa Rica; e os Bijagós, na Guiné-Bissau.

Sabíamos que uma produção que envolvia tantas viagens para locais remotos era  bastante audaciosa. Mas, quanto mais pesquisávamos sobre estas matriarcas, mais elas nos inspiravam a seguirmos firmes no propósito de colocar o projeto de pé. Ao mergulharmos no assunto, percebemos que estas mulheres são figuras centrais nessas culturas e são as maiores garantidoras do matriarcado. Isto é, essas sociedades se organizam em torno de uma matriarca e de seus valores. Porém, dentro do meio acadêmico, este era um assunto controverso, com alguns estudiosos defendendo que nunca existiram sociedades matriarcais. O cerne da polêmica geralmente gira em torno da própria definição da palavra. Seria o matriarcado o oposto do patriarcado, com as mulheres dominando e subjugando os homens? Foi quando descobrimos o trabalho da antropóloga alemã Heide Göttner-Abendroth, que, ao longo de anos pesquisando várias dessas sociedades (incluindo algumas das quais visitamos), afirma que  o matriarcado não é oposto do patriarcado. Ela o define como “uma sociedade centrada na figura da mãe e baseada em valores maternais, como cuidar e nutrir. Seus preceitos visam a atender às necessidades de todos da melhor maneira possível, transformando a maternidade em um modelo cultural”. Entrar em contato com essa perspectiva foi revelador e se alinhou com tudo o que já havíamos percebido sobre estas comunidades até então. Ficamos cara a cara com o que seria o ponto de vista do projeto: olhar para estas sociedades fazendo um paralelo com a nossa, tendo a figura da mãe e este conceito de matriarcado como a base de nossas escolhas narrativas. Além de ter nos inspirado, essa definição acabou fazendo muito sentido no desenrolar do projeto porque, coincidentemente (ou não), quando assinamos o primeiro contrato da série, uma de nós, a Joana, se tornou mãe. E agora, com a estreia, é a vez de Clara, que está prestes a ter seu primeiro filho. Portanto, a maternidade, desta forma muito simbólica e potente, abriu e está fechando este ciclo.

Sendo assim, não poderíamos deixar de destacar a experiência que tivemos ao testemunhar como a maternidade é vista, sentida e exercida de forma tão completa e inspiradora nestas culturas, sendo inserida em todos os lugares da comunidade. A mãe não está reservada somente ao espaço privado. Ela está presente e participa ativamente dos espaços públicos, exercendo funções nas esferas políticas, sociais e econômicas. Para isto ser possível, o trabalho doméstico e o de educação das crianças, essencialmente trabalhos de cuidado, são desempenhados por todos, homens e mulheres, e não são considerados inferiores. O exercício deste cuidado é visto como sendo de alto valor e presente em todos os âmbitos da sociedade, pois é imprescindível para a sobrevivência humana e para a formação dos indivíduos e cidadãos das próximas gerações.

Diametralmente oposto a isso, em nossa cultura e em um mercado como o nosso (onde tempo é dinheiro e o modelo de trabalho costuma ser massacrante), a maternidade não é valorizada e nem incluída em todas as esferas da sociedade, ficando relegada quase que exclusivamente ao ambiente doméstico. É difícil repensarmos este modelo por aqui, mas é importante refletirmos como a nossa cultura de trabalho foi criada a partir de uma perspectiva masculina, seguindo os desejos e as necessidades de um determinado grupo de indivíduos, que por muito tempo não incluiu mulheres, e até hoje não inclui mães. Consolidou-se a participação feminina no mercado de trabalho, mas não a maternidade, e nem a paternidade. O resultado disso é a consequente exclusão de mães dos ambientes profissionais, com muitas mulheres sofrendo este impacto na carreira. Portanto, se torna urgente naturalizar o binômio mulher/mãe neste espaço, assim como estimular cada vez mais o papel dos pais no cuidado com as crianças.

Na série, trazemos muitas das reflexões que nos motivaram a contar essas histórias, e esperamos que estes matriarcados inspirem mais pessoas a naturalizar e a valorizar a maternidade e a paternidade em todas as esferas da sociedade. Talvez, partindo desta perspectiva mais empática e inclusiva, a gente consiga reconhecer o valor do cuidado como algo essencial para garantirmos um desenvolvimento mais sustentável, com igualdade de gênero e maior qualidade de vida para todos.

Diante de uma sociedade patriarcal, individualista, narcisista e com uma saúde mental em frangalhos, como a nossa, valorizar a maternidade e a paternidade, mudando a ótica de nossos valores, deveria ser, portanto, um ato social, político e de sobrevivência, fundamental nos dias de hoje.

Clara Deák e Joana do Prado são criadoras, diretoras e roteiristas da série “Sociedades matriarcais” (GNT/Spray Media)