Nos últimos anos, o termo “lugar de fala” tem sido amplamente discutido; a filósofa e escritora Djamila Ribeiro é uma das grandes transmissoras do conceito e reforça que cada um de nós tem um papel a desempenhar na luta antirracista, partindo de lugares diferentes. Eu, enquanto uma mulher não negra, de origem asiática, não posso dizer, em primeira pessoa, quais são os pontos de tensões que perpassam pela vida de uma mulher negra, que afligem sua autoestima e identidade, por exemplo - também não tenho a intenção de estar neste lugar, pois sei que ele não me cabe.
No nosso dia a dia de trabalho na área de marketing, uma das formas que encontramos de fazer isso foi a criação de campanhas que questionam paradigmas e propõem mudanças, o que muitas vezes acontece quando lançamos produtos que atendam às necessidades de diversos tipos de consumidores. Para começar, estamos em um país onde 56% das pessoas são negras. Os dados vão além: 7 em cada 10 brasileiros acreditam que é papel das marcas apoiar a diversidade (Instituto Locomotiva/iO Diversidade/B3, 2023). Essa percepção aparece, inclusive, na hora da compra: 81% das pessoas estão dispostas a dar preferência a marcas diversas.
Esse trabalho de marketing, logicamente, não acontece de forma individual e isolada. Ele existe porque temos uma agenda de diversidade e inclusão enraizada na Unilever, há pelo menos 10 anos, em que as marcas são um dos pilares, ao lado de outros três: os talentos, os fornecedores e a comunidade. Um trabalho feito em muitas mãos, a fim de desafiar estereótipos, promover a igualdade e contribuir com uma perspectiva de autoaceitação. O mercado da beleza é uma de nossas ferramentas, e o cabelo cacheado/crespo tem sido um dos protagonistas dessa nova história que queremos contar.
A campanha ‘Uma princesa puxa a outra’, lançada em outubro de 2023 com a linha Juntinhos, da marca Seda, é um desses exemplos. Ela nasceu de um questionamento interno (dos nossos talentos). O ‘rosto’ dos produtos é a Tiana, do desenho ‘A princesa e o sapo’, da Disney. No filme original, ela sempre está de cabelos presos, mas a mensagem que queríamos passar com a campanha é a de que crianças e adultos de cabelos cacheados e crespos podem e devem usá-los como quiserem. Para isso, convidamos a Disney a redesenhar a princesa Tiana, dessa vez com os cabelos soltos (aqui entra o pilar de fornecedores/parceiros). E é assim que ela aparece não só nas embalagens dos produtos, como também no vídeo de lançamento da campanha.
No filme, ao soltar os cabelos, a princesa Tiana gera um efeito dominó: ela inspira a professora de balé Tuany, que influencia as suas alunas (entre elas a Maria Antônia, filha da Taís Araújo e do Lázaro Ramos) a também usarem os cabelos soltos. A resposta foi global, com mais de 6 mil reproduções no TikTok, de pessoas soltando seus cabelos como na campanha e 100% de comentários positivos nas redes sociais da marca Seda nos quesitos reconhecimento, identificação e sentimento de pertencimento.
Recentemente, a campanha foi indicada à categoria “Destaque Publicitário”, do prêmio “Sim à Igualdade Racial”, organizado pelo Instituto Identidades do Brasil (ID_BR) para celebrar pessoas, organizações e projetos que objetivam combater o racismo no país. O que me faz refletir o quanto o marketing é um aliado para propormos um debate tão urgente e necessário como este com escuta ativa, para quem de fato precisa falar e ser ouvido. Foi justamente o que fizermos ao ouvirmos 1.001 mulheres negras (pretas e pardas), entre 18 e 50 anos, das cidades de Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. A pesquisa ‘Cabelos sem limites, como nós’, conduzida pelo time da Seda, em parceria com o Instituto Sumauma e RPretas, mostra que 8 em cada 10 entrevistadas consideram seus cabelos uma ferramenta fundamental de expressão. Outro dado revelado é que 70% delas sentem que a sociedade ainda as pressionam a alisar os cabelos devido a preconceitos sociais antigos, que limitam a valorização dos cabelos crespos e cacheados e restringem a autoexpressão autêntica.
No fim, estamos falando de muitas coisas: de criar produtos que atendam a uma grande parcela da população que não se sente contemplada pelas opções existentes, de movimentar e impulsionar a nossa cadeia de valor, de gerar impacto positivo nas comunidades em que atuamos e, sobretudo, de provocar as transformações estruturais que tanto precisamos como sociedade. Tudo isso, claro, com a coerência de uma construção feita por e para todas as pessoas.
Nathalie Honda é CMO Beauty&Wellbeing Brasil and Hair Latam na Unilever
nathalie.honda@unilever.com