Apenas os grandes conflitos armados foram capazes de cancelar os Jogos Olímpicos. A Primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918, suspendeu a edição de 1916. Já a Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, impediu a realização do torneio nos anos de 1940 e 1944. O Japão seria a sede da competição em 1940, mas perdeu o direito porque em 1937 entrou na Segunda Guerra Sino-Japonesa.
Mais de oito décadas depois, o fantasma insiste em rondar a terra do sol nascente. Desta vez, o algoz não tem bombas nem armas em punho. O inimigo é invisível, mas igualmente mortal. A Covid-19 desafia Tóquio, que se vê em um impasse. A população desaprova a realização da 32ª edição dos Jogos Olímpicos, que seria realizada entre os dias 24 de julho e 9 de agosto de 2020. Mas teve de ser adiada, pela primeira vez na história dos Jogos, para os dias 23 de julho a 8 de agosto de 2021, devido a uma pandemia que tira o fôlego de decisões em todo o mundo.
Mesmo assim, o Japão banca o evento estimado em US$ 15 bilhões, um dos mais caros nos 125 anos do torneio. Os valores do esporte defendidos pelo francês Pierre de Frédy, o Barão de Coubertin, responsável pela reinvenção dos Jogos Olímpicos da Era Moderna – retomados em Atenas, no ano de 1896 – nunca foram tão necessários. Superação, resiliência e esperança, bases do movimento olímpico, são prementes no momento em que as pessoas estão ávidas pela recuperação de uma vida sem a roleta-russa do coronavírus.
“O esporte é uma das plataformas de comunicação mais poderosas na medida em que envolve paixão e emoção. Megaeventos esportivos têm uma capacidade de mobilização gigantesca, atingindo cerca de 3,5 bilhões de pessoas em um período curto”, analisa Fernando Trevisan, diretor da Trevisan Escola de Negócios. O especialista em estratégia de marketing e marketing esportivo lembra que os governos locais aproveitam para promover melhorias de infraestrutura e virar os holofotes para a cidade-sede, gerando potenciais benefícios geopolíticos pouco tangíveis e outros mais concretos como o aumento do turismo.
Ainda que o país esteja fechado para estrangeiros, a expectativa é que mais pessoas queiram conhecer a cultura japonesa. “Apesar de que o Japão já é um dos países mais visitados do mundo, com mais de 30 milhões de pessoas por ano. Em termos econômicos, fica difícil mesmo justificar a realização do evento para o povo japonês”, observa Trevisan. Patrocínios e TV são as principais fontes de renda do evento ao lado das vendas de ingressos e licenciamentos.
Segundo Amir Somoggi, especialista em marketing esportivo e sócio-diretor da Sports Value, o faturamento do ciclo olímpico compreendido entre 2013 e 2016 é estimado em US$ 7,8 bilhões. “Mas deve cair por conta das perdas com live marketing”, indica. “Ainda assim, marcará história como os Jogos possíveis dentro da pandemia”, conclui.
Sangue, suor e lágrimas
Organizadores, governo e marcas vinculadas ao evento enfrentam o dilema. “A expectativa de que o evento pudesse ser um marco da retomada do mundo pós-pandemia vai ficando cada vez mais distante, já que muitos países ainda enfrentam momentos terríveis, inclusive o Japão”, pontua Trevisan.
Por outro lado, se existe um país que, historicamente, tem condições de gerenciar protocolos, é o Japão. Donos das propriedades do torneio, o Comitê Olímpico Internacional e o Comitê Organizador Tóquio 2020 “facilitaram a extensão dos contratos de patrocínio e, até o momento, nenhuma empresa cancelou, mesmo aquelas de setores que notadamente passam por dificuldade, como o aéreo e o turismo”, contrapõe Trevisan.
Segundo o executivo, algumas até elevaram os investimentos para suprir parte do aumento de gastos com o adiamento na expectativa de “associarem a sua imagem a uma postura altruísta de apoio em momentos de dificuldade”, avalia. Aos poucos, as ações começaram a aparecer. Uma delas é a campanha da patrocinadora olímpica mundial P&G sob o mote Movidos pelo Amor, que engloba os esforços de cidadania da empresa para inspirar atos de bondade.
A velocista Allyson Felix, a jogadora de basquete Elena Delle Donne e o tenista paralímpico Shingo Kunieda são alguns dos atletas retratados no filme Sua bondade é sua grandeza, baseado na campanha Obrigado, Mãe!. No Brasil, a jogada é com a ação Apoie Atletas do Amanhã, que fomenta a educação por meio do esporte. A cada cadastro no site da iniciativa até o próximo dia 30 de junho, a P&G doará para a Fundação Gol de Letra o valor equivalente a uma hora de aula de esporte para crianças e adolescentes beneficiados pelos projetos da entidade.
Investindo em emoção
A XP também está de olho nesse lance. “Queremos inspirar vitórias capazes de fazer com que os brasileiros acreditem no país”, declara Guilherme Benchimol, fundador e presidente-executivo do conselho de administração da XP, que acaba de assinar a “maior parceria já firmada com o Comitê Olímpico do Brasil (COB)”, garante Manoela Penna, diretora de comunicação do COB, organização não governamental que completa 107 anos em 2021 com um saldo de 129 medalhas para o Brasil em Jogos Olímpicos.
Com quatro anos de duração, o contrato prevê o patrocínio oficial à entidade e ao Time Brasil para o ciclo olímpico de 2021 a 2024, incluindo os Jogos Olímpicos de Tóquio e os Jogos Olímpicos de Inverno de 2022. O acordo ainda se estende aos Jogos Pan-americanos Santiago 2023 e aos Jogos Olímpicos Paris 2024. Ativações no ambiente online e conteúdo gerado pelos atletas e embaixadores da marca compõem a estratégia. Bruno Fratus (natação), Ricardo Lucarelli (vôlei), Cristiane Rozeira (futebol), Mayra Aguiar (judô), Sheilla Castro (vôlei) e o ex-nadador Fernando Scherer, o Xuxa, fazem parte do time montado pela XP.
Contra-ataque
Transparência foi a arma do COB para reagir ao adiamento. “Os parceiros continuam conosco, e fechamos patrocínios com XP, TIM, Prevent, Havaianas, Riachuelo, Persono, Coteminas e Boali”, ratifica Manoela. A única exceção foi a Travel Ace. A empresa saiu devido a um conflito com a Allianz, que entrou a partir de janeiro de 2021 no programa olímpico global, bloqueando a categoria de seguradoras em todos os territórios.
Os patrocinadores olímpicos mundiais do evento são Atos, Bridgestone, Toyota, Coca-Cola, Intel, Omega, Panasonic, P&G, Samsung, Visa, Dow, GE, Airbnb, Alibaba e Allianz. Entre os patrocinadores oficiais do COB, estão Peak, Prevent Sports, TIM e XP. Já o time de apoiadores oficiais inclui Aliansce Sonae, Havaianas e Riachuelo. Ajinomoto e BRW são os parceiros oficiais, enquanto Boali, Max Recovery, Persono e Wöllner aparecem como fornecedores oficiais.
“Todas as providências foram tomadas junto às confederações para garantir a boa performance do Brasil. Com a nossa política de austeridade e controle, otimizamos os investimentos e estamos conseguindo atender com segurança”, diz Paulo Wanderley Teixeira, presidente do COB, que espera superar os resultados dos Jogos Olímpicos Rio 2016, “seja em número de medalhas, ouros ou modalidades”, acrescenta.
O Brasil deve levar a Tóquio cerca de 300 atletas de 27 confederações olímpicas. “Será o nosso recorde em Jogos Olímpicos fora do país”, informa Manoela. Além dos aportes vindos dos patrocinadores, o COB é parceiro das Loterias Caixa, que, conforme previsto por lei, repassam 1,7% do valor apostado em todas as loterias federais do país para investimento no esporte olímpico brasileiro. A estimativa é receber cerca de R$ 301 milhões. Desse total, 87% são destinados à prática esportiva, maior valor já aplicado nesta finalidade.
Na mosca
A tática do COB para ativar o interesse do mercado publicitário pelo movimento olímpico conta com um projeto de credenciamento de agências por onde já passaram Dream Factory, Documentta, Eita, Golden Goal, Momentum, Moveme, V3A, AP&V, Emir, Agence TV e outras que estão em processo de validação.
Hoje, as agências que atendem ao COB são Double L (Hall da Fama), Agência Beta (Jogos Escolares), Dream Factory (Prêmio Brasil Olímpico e Congresso Olímpico), Octagon (Casa Brasil e ativação Tóquio) e Golden Goal (ativação Mascote Ginga), além da revendedora oficial de ingressos Match Hospitality.
Mesmo diante de tantos esforços, foi preciso cancelar alguns eventos presenciais, como Festival Time Brasil, Festival 100 Dias, Festival Olímpico, Prêmio Brasil Olímpico 2020 e Jogos da Juventude 2020. O projeto Casa Brasil foi interrompido em fevereiro de 2020, antes mesmo da pandemia, devido aos altos custos de operação no Japão. “Em alguns casos, levamos as experiências e propostas de engajamento para o ambiente digital”, explica Manoela.
No marco de 100 dias para os Jogos, em abril, além de doar cerca de 25 toneladas de alimentos para mil famílias em situação de vulnerabilidade, o COB iluminou a estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, com as palavras respeito, coragem, foco, disciplina, determinação e superação para mostrar a força do esporte na travessia da Covid-19.
Arma do jogo
Pivô das readaptações, o digital e o conteúdo instigam a conversa e motivam o engajamento dos torcedores. “As nossas ativações serão focadas nos canais digitais. Experiência, entretenimento e contato com o ambiente do esporte serão mantidos, assim como na experiência presencial”, assegura Ana Paula Niemeyer, head de marketing da Aliansce Sonae, apoiadora do COB desde 2016.
Exposições, instalações interativas, eventos infantis e encontros com atletas já foram realizados. A empresa prepara ações online a fim de ativar as marcas do COB, Time Brasil e a mascote Ginga. Organiza ainda espaços interativos nos shoppings para que o público possa guardar as lembranças de um momento que desafia as marcas a serem ainda mais criativas.
“Acompanhamos as novas formas de se fazer live marketing e criar interações com o público”, afirma Daniel Negretti, diretor de criação da Octagon, que, desde 2019, já implementou eventos para o COB na Japan House e no bairro da Liberdade, ambos em São Paulo.
Montou ainda um espaço na Game XP, enaltecendo as novas modalidades olímpicas, o surfe e o skate, com viés de tecnologia na experiência do fã. A agência criou também uma ação digital embasada na estética do mangá, arte tradicional no Japão. “Escolhemos alguns atletas do Time Brasil e transformamos histórias de vida em uma saga típica dos quadrinhos japoneses com desdobramento ao público por meio de um filtro personalizado para redes sociais”, explica Negretti.
Vitória coletiva
Mas será que as revisões de campanhas serão suficientes para suprir o ônus do adiamento? Na opinião de Negretti é difícil dizer. “Apesar de mais tempo para ativar, a atenção ainda é muito dividida com o momento delicado da pandemia”, reflete. Mesmo assim, a expectativa é de que essa edição dos Jogos puxe transformações sociais e tecnológicas lembradas para sempre.
“É um momento de união, de torcer pelas raízes, de vibrar como se a vitória fosse nossa. O esporte tem o poder de reavivar valores como resiliência, ética, humanidade e garra. Será um combustível extra”, frisa Fernanda Romano, CMO da Alpargatas, dona da Havaianas, primeira marca oficial de calçados a compor o uniforme das delegações olímpica e paralímpica na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio.
Desenvolvidas pela Dojo, as ativações online mostram a ligação da marca com o brasileiro. Filmes e conteúdos para
TikTok e Twitter fazem parte do plano, que integra ainda a websérie Feitas com orgulho. Ela retrata o cotidiano dos colaboradores que fabricam as sandálias separadas para os atletas. “A cerimônia de abertura será um momento muito importante para a nossa estratégia de comunicação”, alerta Fernanda.
Treino para a vida
Outra websérie, da japonesa Ajinomoto, mostra a preparação dos atletas para os Jogos em meio à pandemia. Lançada em 2020, Desafie o seu Sistema ainda tem quatro episódios, que serão lançados até julho. A campanha inclui geração de conteúdo nas redes sociais da companhia e da marca Amino Vital, além de evento online para celebrar os dois anos do Projeto Vitória e do Time Ajinomoto Brasil, hoje composto por 32 atletas olímpicos e paralímpicos.
“O grupo é referência internacional em pesquisa e produção de aminoácidos e daí nasceu a sua ligação com o esporte”, conta Priscila Santana, gerente de comunicação da empresa que é parceira do COB desde 2019, quando o Projeto Vitória aportou em solo brasileiro. Lançada no Japão em 2003, a iniciativa endossa o conceito “kachimeshi”, que significa “alimentação para vencer”.
“Este é um momento delicado. Estavam previstas ações em Tóquio, como o patrocínio do espaço Family & Friends. Entretanto, muitas precisaram ser readequadas ou até canceladas em função da pandemia”, lamenta Priscila. Mas a empresa seguiu no propósito de apoiar o esporte brasileiro.
“Confirmamos a entrada de novos atletas bem como a renovação de contratos com os integrantes que já faziam parte da equipe”, reitera Priscila. Excelência, amizade, disciplina, equilíbrio e respeito. Transpor os valores olímpicos para o dia a dia pode trazer o alento de que as pessoas precisam para vencer a pandemia, como um time.