No hit A Carne (1998), Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti escancaram uma realidade latente no Brasil: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. Passadas mais de duas décadas desde o lançamento da música, motivada por um espírito de mudança e de empoderamento do povo negro, Elza Soares reescreveu a canção no álbum Planeta Fome (2019) e cravou: “a carne mais barata do mercado não tá mais de graça”. E não está mesmo.
Segundo dados do Instituto Locomotiva, a população negra movimenta R$ 1,7 trilhão no Brasil. Se os consumidores negros formassem um país, seriam a 17ª maior nação em consumo do mundo. Mas, na contrapartida desses números, é evidente a desigualdade social de uma parcela que corresponde a 54% da população brasileira. Dados do IBGE apontam que o público negro representa dois a cada três desempregados no Brasil. E a cada R$ 1 mil de salário de uma pessoa branca, um negro ganha R$ 550.
No mercado de comunicação, o cenário replica essa desigualdade, principalmente, entre mulheres negras. Além de minoria nas agências, correspondendo a apenas 9% do quadro geral de funcionários, como revelou o levantamento feito pelo PROPMARK e More Grls, elas ocupam apenas 4,3% dos cargos de liderança. Segundo Daniele Mattos, cofundadora da consultoria Indique Uma Preta, o racismo e o machismo estruturais dominam o mercado de trabalho como um todo. Não à toa, segundo dados do Ipea, mulheres negras são 50% mais suscetíveis ao desemprego. Mas olhando para a indústria criativa, a situação piora.
“Basta visitar as áreas de criação das grandes agências: qual é o reflexo que 54% da população brasileira apresenta nesses espaços? Então, sim, o buraco é muito mais embaixo em uma indústria que há anos premia as mesmas pessoas, com as mesmas narrativas e o mesmo tom de pele, que sobrevive do privilégio de cargos, faculdades e indicações que não furam a bolha”.
As razões para mulheres negras não ocuparem seu espaço nas agências estão intimamente ligadas a questões socioeconômicas, mas remetem também a um fator histórico muito anterior.
É o que explica Samantha Almeida, head de conteúdo da Ogilvy. A criativa lembra que a indústria da comunicação foi formatada pela elite econômica majoritariamente branca, com grande influência no período de colonização predominantemente exploratória dos negros. “Na metade do século 19, os jornais eram o principal meio de comercialização de escravos por exemplo”, destaca Samantha, que contextualiza os anos seguintes. “Em 1980, eram comuns campanhas racistas como do Alvejante Chlorinol, que associava negros à sujeira, ou a esponja de aço Krespinha, que usava cabelos crespos para representar palha de aço. Ou seja, se a propaganda foi muito responsável por deturpar e estereotipar a imagem do negro na sociedade, embranquecendo referências de aceitação, beleza, sucesso e poder, mulheres negras nunca foram bem quistas nesses espaços”.
Somando o racismo estrutural ao sistema de privilégios que restringem o acesso à educação ao povo negro, temos como resultado a baixa representação da população em mercados como a propaganda, como explica Tawane Silva, diretora de arte na agência Mestiça e fundadora do Periféricas. Ela criou o projeto que dá capacitação para estudantes de publicidade que moram na periferia de São Paulo. Tawane explica que a falta de acesso à educação e a outras ferramentas básicas para a profissão, como computador e internet, além da necessidade de remuneração, impedem que as mulheres sequer possam sonhar em trabalhar com propaganda. “Pessoas negras e periféricas, em sua maioria, precisam de retorno financeiro rápido e a estrutura do mercado criativo é muito elitista. Meninas que, muitas vezes, são mães, bancam sua faculdade acabam escolhendo qualquer outro curso que lhes dê um norte financeiro”, lamenta.
Resistência
Se por um lado, o cenário de desigualdade exige que mulheres negras precisem resistir para adentrar no mercado, por outro lado há um movimento importante de empoderamento, representatividade e representação na propaganda. Nesse contexto, as redes de apoio para que outras profissionais também possam chegar lá são ferramentas fundamentais.
Após passar por experiências negativas em agências que tinham salários desiguais para profissionais negros ou, ainda, que adotavam políticas de diversidade apenas para “cliente ver”, mantendo negros apenas em cargos de estágio e trainee, a publicitária Vanessa Ferreira resolveu voltar às suas origens e empreender.
Criada na Vila Guarani, na capital paulista, a diretora de arte conta que desenhar é uma atividade popular na periferia, onde surgiu o grafite, mas aprendeu desde cedo que aquilo não lhe garantiria o sustento. Contrariando a lógica, se formou na Faculdade Belas Artes com bolsa integral e, após 10 anos no mercado, hoje se dedica há três ao Preta Ilustra, projeto de ilustrações inspiradas no movimento Afrofuturista.
Em seus traços ela celebra a ancestralidade de seu povo e ressalta o poder do feminino e outras questões profundas da origem africana, como religião e cultura. Com trabalhos para marcas como Levi’s e projetos editoriais sob encomenda, Vanessa faz parte do coletivo Pretas Ilustram, que fomenta o trabalho de ilustradoras negras com workshops e encontros focados em capacitação. Ela também faz transmissões ao vivo em suas redes sociais, orientando jovens talentos, principalmente, negros, que buscam viver de arte.
“Precisamos pensar para além da representatividade. É importante ter na propaganda a presença de negros. Estamos aprendendo a nos amar. Nossos filhos agora nasceram nesse processo. Mas precisamos permitir que esses corpos belos aprendam a sobreviver. Brigar por políticas públicas, acesso e igualdade em todos os espaços. No mercado de trabalho, quando uma mulher negra produz, ela é política, não precisa nem falar nada. Se ela está viva para produzir, para trocar conhecimento, isso é resistência porque antes ela não existia naquele espaço”.
A luta e o reconhecimento coletivo foram também o que motivou Egnalda Côrtes a empreender. Como CEO da agência de influenciadores negros que leva seu sobrenome, a empresária decidiu abrir o negócio em 2016 a partir de uma demanda muito particular de seu filho, PH Côrtes, um dos principais influenciadores negros hoje. “Eu não tinha certeza de nada. Não fiz plano de negócios nem pesquisa de mercado. A única coisa que fiz foi por meu filho, que à época, aos 14 anos, me disse que desistiria de um sonho de ser cineasta porque o mundo não aceitava pessoas como nós”.
Ao se tornar conhecido por seu canal no YouTube que narra a história de heróis negros, PH Côrtes e a agência criada por sua mãe criaram um nicho inexistente no marketing de influência. Com uma carreira sólida no mercado de telecom, área financeira e de vendas, Egnalda hoje se dedica a fomentar a diversidade como estratégia de negócio para anunciantes e parceiros. Além de PH, a Côrtes representa outros perfis relevantes com recorte étnico racial e protagonismo negro, como o de Gabi Oliveira, que soma mais de 800 mil seguidores em suas redes sociais.
“A minha empresa por si só tem caráter político. A gente fala de questões raciais que nem são aceitas de forma fluida no Brasil. Muitos ainda julgam que isso é segregação, mas esse espaço sequer existia para o povo negro. Então, não faz sentido que só meu filho cresça, mas a maior quantidade que eu puder levar junto. Se apenas um negro chegar não é o bastante”.