Piva: ficamos muito sérios em nossa publicidade digital, mais técnicos do que criativos. Precisamos retomar a ousadia

 

André Piva, cofundador e CCO da Lov, é o jurado brasileiro de Cyber no Cannes Lions 2014. Desde abril ele vem julgando cases pela internet e prepara-se para avaliar as peças no festival, que começa no dia 15 de junho. Piva analisa o mercado de digital brasileiro e constata: “estamos muito sérios”. Ele defende mais experimentação e menos tecnicidade. “Fala-se muito de inteligência de negócio, métricas, mídia programática. O Brasil se diferenciou em Cyber no início por sua capacidade de fazer sem medo de errar. Mas a criação está burocrática”.

Escolha como jurado
“Foi uma surpresa ser escolhido como jurado. Estou no mercado há bastante tempo, comecei em 1998, como diretor de criação da Ogilvy, meu nome já havia ido algumas vezes para a pré-seleção do Cannes Lions, mas eu nunca havia sido escolhido. Dessa vez, fui e fiquei muito surpreso. Não somos uma agência que investe muito no Cannes Lions, mas, de verdade, creio que foi merecida [a indicação]. Estou nesse mercado há bastante tempo e estava esperando a minha vez. A verdade é que todo mundo sonha com isso. Eu já tive a minha agência, já vendi a minha empresa e ser jurado em Cannes era algo que faltava. É importante como experiência, julgo uma oportunidade rica. É uma possibilidade de conhecer pessoas e trocar informações em um nível de discussão muito alto. É preciso estar preparado. Isso é legal de ser vivido. O júri neste ano tem pessoas bem legais e de várias agências que admiro. Faz parte da carreira ir para Cannes como jurado e eu teria me aposentado frustrado se não fosse.”

Preparação necessária
“É impossível não estar se preparando para Cannes. Isso não existe. Eu já estou votando desde o dia 28 [de abril]. São 800 peças para eu avaliar até a data de embarcarmos para o festival, uma média de 20 a 30 cases por dia. Em média, cada um tem três minutos, mas, para você dar uma nota, é preciso passar por todos os itens da inscrição: apresentação, versão curta do filme, links presentes, resumo da peça. Há ainda, no caso de campanhas que tenham elementos distantes da nossa cultura, a necessidade de checar contextos e isso toma tempo. Eu, pelo menos, estou fazendo de forma séria. É impossível não estudar. Tenho também um grupo de amigos que são diretores de criação e pergunto para eles se aquela peça realmente rodou no seu país. É importante essa fase. Quanto mais você se aprofundar nos cases, mais preparado chega para debater no júri de igual para igual.”

“Sweetie”
“Um case fantástico com o qual me deparei chama-se ‘Sweetie’. É holandês [da agência Lemz para a Terre des Hommes, organização que luta contra o abuso sexual infantil]. Eles desenvolveram, digitalmente, uma personagem pré-adolescente de 12 anos, de origem filipina, para participar de conversas pela internet. Com esse trabalho, eles conseguiram identificar mil pedófilos. É um trabalho que vale a pena. Por esse e outros motivos, está sendo uma experiência muito rica para mim. Gostaria de poder me envolver mais e, em vez de gastar 10 minutos por peça, passar 40 minutos estudando cada uma. Nosso universo de digital é muito complexo. Você não está só julgando uma ideia, mas analisando também tecnologia, inovação, a forma como a agência conectou recursos. É difícil até julgar se algo é bom ou ruim. Entre as áreas do festival, creio que Cyber é a mais complexa. ‘Sweetie’ utilizou todos os recursos possíveis: modelagem 3D para desenvolver a personagem, tecnologia para traquear os criminosos, criatividade para ter esse tipo de ideia e é uma ação com propósito.”

Readaptações
“Vivemos muito de ondas no digital. Se voltarmos para 2003, as mesmas coisas que ouvimos hoje eram ditas lá atrás. ‘Real time’, ‘engajamento’, ‘tornar as pessoas parte da comunicação’ – são todas lições que ouvimos hoje ainda. Só que o real time e o engajamento são feitos de uma forma diferente a partir das mudanças nas tecnologias disponíveis. Vivemos readaptações.” 

Publicidade-manifesto
“Tomara que a gente faça cada vez mais publicidade com menos cara de publicidade. Acredito que, neste ano, o festival valorizará novamente isso [em 2013, o GP foi para a série ‘The Beauty Inside’, da Pereira O’Dell para a Toshiba], pela presidente do júri [Susan Bonds, da 42 Entertainment, empresa por trás da campanha de promoção do filme ‘The Dark Knight’]. Ela é uma contadora de histórias e é especialista em envolver o consumidor em narrativas publicitárias. E esse é o espírito da comunicação atual. Precisamos ser mais experimentais porque estamos muito técnicos. Fala-se muito de inteligência de negócio, métricas, mídia programática. Está tudo muito robotizado. O Brasil se diferenciou em Cyber no início por sua capacidade de fazer sem medo de errar. Mas hoje a criação está muito burocrática. As coisas mais experimentais que fizemos foram as que tiveram destaque. O ‘Enterro do Bentley’ [da Leo Burnett Tailor Made para a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos] é um exemplo de comunicação ‘não certinha’ e que soa bem no digital.”

Expectativa Brasil
“Ainda não me deparei com peças brasileiras no lote de campanhas que estou julgando. Mas alguns me enviaram peças para que eu desse uma olhada, como Artplan e Leo Burnett. Já a Loducca inscreveu ‘Somos todos macacos’. O Brasil não está menos criativo do que era. Mas está menos experimental do que era. Passamos por uma fase de amadurecimento: muitas das agências digitais do país foram vendidas, depois houve o período de acomodação dessas empresas; temos um mercado ainda bastante voltado para a televisão, diferente de mercados mais pulverizados como os Estados Unidos, e esses são fatores que acabam afetando o Brasil. De toda forma, o país sempre terá força criativa. O case de Dove ‘Retratos da Real Beleza’ [da Ogilvy Brasil para a marca] teve bastante repercussão, mas é um trabalho internacional, com bastante investimento, algo que não é padrão em nosso mercado.”

Seriedade que atrapalha
“Ficamos muito sérios em nossa publicidade digital, mais técnicos do que criativos. A peça que a DM9DDB levou Grand Prix em 2005 [‘Monitor’, para a Super Bonder] tinha real time, tecnologia, ousadia, criatividade… mas está faltando essa ousadia [na época, a agência colou, com um tubinho de Super Bonder, um monitor de 11 quilos na parede da agência. Uma câmera em frente ao monitor transmitia imagens da agência para a internet]. Precisamos retomar isso. Temos já grandes investimentos em digital e poderíamos ter mais cases como esse da DM9, mas, para isso, precisamos arrumar a casa. Estou vendo um retorno de ideias bacanas e de pessoas interessadas em fazer diferente. Se há um país que pode inovar, esse lugar é o Brasil. Estamos no caminho.”

Mudança em Cyber
“O festival mudou bastante a área de Cyber neste ano. Algumas categorias morreram, outras surgiram. Eles conseguiram, com essa mudança, absorver campanhas que antes não tinham espaço definido dentro da área. Acredito que todos os anos haverá mudanças em Cyber porque digital se transforma muito rapidamente. Para se criar em digital, criatividade é um pedaço muito pequeno. O conhecimento que vem antes de você ter a ideia criativa é que conta. Acredito que o festival nunca conseguirá abarcar tudo, mas ele tem tentado. Cyber é uma categoria importante. É bom que as pessoas consigam ver a força que o digital tem, ele é o coração de muitas campanhas hoje em dia, que acabam sendo inscritas em outras categorias. Se há uma área que precisa morrer, com certeza não é Cyber.”

Fantasmas em Cannes
“Acho muito difícil ainda ter fantasma em Cannes. Primeiro que, se tiver, será muito difícil de passar. A organização está muito criteriosa. Todos os comunicados que recebemos do festival são para que a gente cheque as peças, para ficarmos atentos às peças do nosso próprio país. Creio que ninguém mais faz isso [inscrever peças fantasmas]. Ou um trabalho tem repercussão e resultado ou ele não vai ganhar. Do que eu vi até agora, todos os cases têm resultados ratificados. Acho difícil algo ir para frente na votação sendo fantasma.”

Peças para Cannes
“É um erro soltar peças próximas ao Cannes Lions para concorrer somente no festival. A dinâmica de Cannes é igual à de um festival de cinema ou de curtas: o filme precisa ir sendo esquentado antes de chegar ao evento. A mesma lógica deveria ser aplicada na publicidade. É muito difícil acreditar numa peça que acabou de sair, até porque essa peça não conseguiu nenhum resultado [se foi veiculada próxima a Cannes somente]. Isso precisa mudar. Quando Dove chegou ao festival, por exemplo, já entrou vencedora [‘Retratos da Real Beleza’, da Dove, levou 19 Leões, incluindo o Grand Prix de Titanium, prêmio inédito para o Brasil]. É uma peça que não precisava de defesa, falava por si só. Os jurados já haviam visto aquela peça antes.”

Tempo escasso
“Temos toda a tecnologia de que precisamos aqui dentro do Brasil: agências, startups, desenvolvedores. Mas não temos o tempo necessário para colocar essas pessoas para conversar. Para isso, é preciso uma união maior entre agências, produtoras, clientes e startups para que comecem a produzir algo diferente. Estamos em um mercado que é necessário tempo e dinheiro para produzir coisas boas. Não adianta querer campanhas inovadoras em três semanas. Esse problema não é só do Brasil, mas é muito forte aqui. Não adianta ter todo o ecossistema evoluído porque é preciso o processo.”

Sem ufanismo
“Sempre ouvi sobre jurados que bombavam peças de seu país, mas o processo é tão sério e tão preciso, o festival põe uma pressão tão grande sobre o resultado, que não acredito que isso possa existir. O resultado que sai de Cannes norteia o mercado. Quando se elege um Grand Prix, essa é uma campanha que realmente irá mudar a comunicação. Ninguém quer ir lá e defender algo ruim.”

Processo árduo
“O julgamento começa no dia 11 de junho [antes do início do festival, no dia 15] e ficamos julgando por uma semana. A organização pede para levarmos roupa leve, nos hidratarmos e nos prepararmos para um processo árduo, porque são longas reuniões. Há ainda a questão do idioma, que não é a nossa língua materna, o que cansa. Mas também estarão lá os japoneses, chineses e eles terão as mesmas dificuldades (risos). Conversei com um japonês sobre isso e ele se mostrou apreensivo. Eu respondi que o debate lá é sobre inovação. O conhecimento que temos é tão importante quanto a língua. E é impossível passar por 800 cases e não chegar lá falando inglês, mesmo se começasse do zero! (risos).”

Julgamento
“As peças que os jurados estão avaliando neste momento darão uma seleção, mas ela não chega nem a ser uma longlist. É uma peneira. As peças avaliadas com pontuação até 3 não têm qualquer chance. As com notas entre 4 e 5 podem entrar no shortlist e as acima disso serão shortlist com certeza. Mas esse processo é revisto depois e é possível, lá no julgamento, puxar peças que essa triagem acabou excluindo. Se eu vir, por exemplo, que a peça ‘Sweetie’, de que gostei muito, não entrou, posso solicitar que ela seja reavaliada. É aí que acontece a discussão em um júri.”