Após 25 anos no mundo corporativo, com passagens pela Lacoste, onde foi CEO, Novartis, Seven Eleven, Tiffany e Pandora, Rachel Maia passou a se dedicar à ONG Capacita-me, fundada por ela e conduzida pela irmã Márcia Maia, além de ser CEO da RM Consulting. A ideia é contribuir com o “letramento” da gestão empresarial em questões de inclusão, diversidade, sustentabilidade, ESG e capacitação.

Ela, com a sua equipe de 20 pessoas, já orienta Hering, XP e JBS. Mãe de Pedro Antônio e Sarah Maria, Rachel tem quatro MBAs e foco no crescimento das pessoas. Por meio dois seus projetos, Rachel já conduziu 48% dos que receberam treinamento para o mercado de trabalho. Confira a sua entrevista.

Qual é o propósito da Capacita-me, que você criou após dois anos à frente da Lacoste no mercado brasileiro?
Ter propósito. Sou a filha mais nova de sete irmãos e me tornei executiva por meio de um processo evolutivo. Fazer cursos em grandes universidades e ter quatro MBAs foi fundamental para obter conhecimento e empoderamento. Eu sou focada no crescimento e desenvolvimento das pessoas. Sou uma pessoa que gosta de contratar olhando nos olhos e pelo speech. As características pessoais são fortalezas. A Capacita-me é voltada para letramentos, diversidade e inclusão.

Como é esse processo de letramento que você conduz?
Diversidade é mudar quantitativamente. E inclusão é fazer pertencente. As empresas precisam se letrar para se tornar inclusivas. O conhecimento é uma questão cultural. Não aprendemos a lidar com as diferenças. É preciso, portanto, letramento. Para desconstruir e reconstruir. Com skills, muros são quebrados. A experiência parte de provocações desafiadoras para jornadas de transformação.

Poderia elencar exemplos para essa jornada ser realmente transformadora?
A conversa de ‘fazer nas coxas’. Ou pedir na padaria um ‘cabelo de nego’. Não pode ser dessa forma. Porque está ofendendo e é constrangedor. A mudança só se faz com letramento. Muitos sentimentos estão represados. Tínhamos de recusar, mas fomos educados dessa forma. Vamos olhar e ver que há remendos nos muros. Empresas que decidiran letrar a gestão se reconstruíram. Não precisa ter vergonha de aprender, deixar de usar jargões e nem se esconder dentro do que não sabia.

Rachel Maia é CEO da RM Consulting e fundadora da ONG Capacita-me (Divulgação)

Qual é o legado que deixou quando assumiu a presidência da Lacoste?
O digital. Fizemos a implantação logo no início do processo de inclusão, diversidade e letratamento. E também a questão da negritude, que é mais ampla do que a raça. Posso entrar e sair calada que já falei da diversidade. A minha vida tem dinamicidade e avanços em vários aspectos. Por exemplo, contratei mulheres para a posição C-Level. Tudo fifty-fifty.

Na sua visão, por que o preconceito é tão presente mesmo diante de fatos relatados em livros de grande tiragem, jornais e pesquisas?
75% da população periférica acorda cedo e faz seus corres de ônibus. Depois chegam em casa exaustas para cuidar de tudo. No dia seguinte recomeça tudo. Muita coisa precisa ser feita. Sou uma pessoa que instiga um olhar para a oportunidade. Ou seja, correr atrás da solução. Não do punitivo. Há menções para contribuir. Não apenas para trazer críticas.

Como vê a utilização de negros na publicidade, que teve forte incremento nos últimos anos?
Mas precisa ter muito mais. A publicidade é mais aberta. Porque a publicidade tem uma mente à frente do tempo. Não basta estar na parte do management. É o que venho incentivando na publicidade e outros segmentos. É necessário ter gênero e negros em todos os níveis e em todas as lideranças. Não significa dizer; tem de estar na base, ter pensamento plural e continuar inovando para poder ter mais diversidade nas lideranças. O discurso precisa vir das lideranças. É por isso que minha consultoria está disponível para letrar todo mundo que faz a estratégia para incluir o social nesse universo. Diversidade e inclusão, compartilhar valores e pertencer ao sistema.

Há oportunismo na publicidade quando traz à tona temas como a diversidade e a inclusão?
Sim, tem a questão do oportunismo, mas tem a da transformação; trazer complementaridade. O que acontece de dentro pra fora e de fora pra dentro. O consumidor cobra e tem de cobrar mesmo. E procurar empresas que tragam propósito e comprar das marcas mais conscientes. Tudo passa pelo consumidor. Consumir é uma experiência. Se há problema, a responsabilidade é mudar o drive do produto. Ir além do rótulo, da imagem. A marca deve construir atrás de cada rótulo. Precisamos de mais negros. Representamos 56% do mercado de consumo. E isso é uma questão econômica.

Leite Moça é um exemplo?
Houve uma transformação radical na embalagem desse produto, que não mudou só o rótulo, mas o propósito.

Como a capacitação é considerada na metodologia que emprega para o empoderamento da mão de obra negra?
Não sou de postar vídeos nas redes sociais, mas recentemente fiz isso para falar de dois livros: Cartas para a minha Avó, de Djamila Ribeiro, e Preta Potência, de Adriana Barbosa. Também lancei Meu caminho até a cadeira número 1, que tem esse tom inspiracional. A ideia é incentivar a leitura, seja de uma estrofe ou outra. As pessoas decidem seus sonhos. Mas a literatura exerce e faz diferença. E hoje esses conteúdos estão disponíveis. A leitura capacita. Ter uma hora free para a leitura deveria estar na pauta das empresas. Mas uma leitura que faça sentido para a pessoa. Conhecimento gera poder.

O acesso das minorias treinadas pela Capacita-me ocorre de que forma?
Instigo através do meu network e conteúdos que publico em revistas como a Harper’s Bazar, por exemplo, além de posts no digital. Sempre estou pronta para instigar, que é uma via de mão dupla. Se uma empresa tem vaga, temos chance de oferecer uma pessoa bem treinada. 48% do pessoal treinado e capacitado por nós já está no mercado de trabalho. A ideia é permanecer instigando o network e capacitando.

Voltando à publicidade, que tem atribuições como valor econômico de marca, conhecimento, cultura, vendas e fidelização de clientes, como as agências estão tratando dessas questões que você propõe como inclusão, diversidade e negritude?
O que posso dizer é que a publicidade tem o poder de mover a massa. É por isso que questões culturais foram construídas e a publicidade tem essa responsabilidade. Isso significa agregar diversidade ao discurso, entender se aquele artigo é para A, X ou Y. Os direitos são iguais, a escolha é importante, independentemente das diferenças e características físicas. A publicidade tem papel considerável na transfomação se estiver conectada. Porque a publicidade desconectada de propósito vai ficar solta e não vai fazer barulho. A combinação é: propósito, conteúdo e diversidade.

Como incorporou seus conceitos nas marcas que trabalhou?
Não sei se trouxe para esses negócios traços da minha personalidade. O que sei é que as empresas de varejo precisam ter no seu mindset todas as questões que o ecossistema atual está tratando. Repito: diversidade, inclusão e outros temas precisam fazer parte da estratégia. E começar de cima. Esse olhar mais amplo não existia lá atrás. Não haviam grupos de empoderamento, afinidades e afirmativas. Os profissionais tinham de dar conta de tudo. Agora a estratégia precisa levar em consideração toda a diversidade presente na sociedade.


Qual é a sua ponderação para as cotas na educação?
Vejo as cotas raciais como uma ação transitória, mas fundamental. Só foi por meio de cotas nas universidades que o percentual de participação de alunos negros passou de um para dois dígitos. Somos uma geração transitória. As próximas terão mais negros em cargos executivos, em universidades, em cargos políticos e assim por diante. Até quando vai durar a transição que faz das cotas uma política necessária, eu não sei dizer com exatidão. Se daqui a 20 anos minha filha me perguntar: ‘Mãe, como é que funciona mesmo esse negócio de cotas?’, será um sinal de que essa política deixou de ser necessária. Mas enquanto os negros, que representam 56% da população brasileira, não tiverem participação equivalente nas diversas esferas, o Brasil terá, sim, de tratar desse tema. E, também, priorizar a contratação de negros em processos seletivos nas empresas.

Quem é a Rachel?
Por ter trabalhado tanto em empresas de fora do país, as pessoas passaram a me chamar com o acento em inglês. Eu me acostumei com isso. Mas não faço questão. Sou família e gosto de cuidar dos meus. Sou festeira e adoro estar com meus amigos, que tive de me afastar devido à pandemia. Vinho, queijo e amigos são coisas que aprecio bastante. Minha grande preocupação está relacionada às diferenças. Há 15 anos venho estudando ESG e sustentabilidade de um modo geral. Estou finalizando na Saint Paul um MBA focado em sustentabilidade.