A evolução científica e da própria sociedade ajudou a reconhecer que a criatividade é um talento inerente ao ser humano independentemente de gênero ou cor de pele. No entanto, a publicidade mantém um fato incômodo: há pouquíssimas mulheres nos departamentos de criação das agências. “É um fato. Não dá para discordar. Se você ligar e perguntar quantas mulheres tem no quadro de criação, você percebe isso facilmente”, afirma Fernanda Romano, sócia e diretora-geral de criação da Naked Brasil.

Fernanda Romano, diretora-geral de criação da Naked BrasilA primeira conclusão seria dizer que o mundo da publicidade é machista, afinal o machismo ainda está presente tanto na publicidade como na sociedade em geral, porém também é um fato que as agências estão repletas de mulheres em outros departamentos, como atendimento e planejamento, inclusive em posição de liderança, como é o caso de Celina Esteves, vice-presidente-executiva da Africa. “Atendimento tem um número bem grande de representantes do sexo feminino porque a mulher é naturalmente multidisciplinar e lida melhor com vários assuntos ao mesmo tempo, o que combina com a função. Mas a verdade de que há poucas na criação não é falta de vocação nem de interesse”, diz a executiva.

Se fosse por falta de interesse, a publicidade brasileira não teria conhecido, por exemplo, Christina Carvalho Pinto, redatora que se tornou a primeira mulher a presidir uma grande empresa do setor na América Latina, a Y&R, que liderou como sócia por sete anos, antes de se associar ao grupo Full Jazz. Ou Joanna Monteiro que, no ano passado, além de ser eleita a mulher mais criativa do mundo pela publicação norte-americana Business Insider, foi considerada uma das 50 mentes mais criativas do planeta (incluindo homens e mulheres) pela prestigiada revista Advertising Age – ela foi a única pessoa do Brasil a figurar na lista, ao lado de nomes como o chef Anthony Bourdain e os diretores Richard Linklater (“Boyhood”) e Steve McQueen (“12 Anos de Escravidão”).

Joanna Monteiro, VP de criação da FCB Brasil“A mulher expurgou o departamento de criação durante a era yuppie, quando o mercado  radicalizou voltado à conquista de prêmios e começou a exigir que os profissionais virassem noites no trabalho. A carreira na criação se tornou desinteressante para a mulher”, explica Joanna Monteiro, vice-presidente de criação da FCB Brasil.

A análise é endossada por Mariangela Silvani, diretora-geral de criação da Grey Brasil: “As mulheres desapareceram diante das jornadas insanas de trabalho. Houve um tempo, felizmente isso está mudando, em que virar a noite na agência era sinônimo de bom profissional. Era praticamente impossível conciliar vida familiar ou qualquer tipo de vida ao trabalho. Nesse momento, as mulheres fizeram suas opções”.

Fernanda Romano também reflete sobre como o pensamento dos anos 80 e 90 impactou na participação da mulher na criação: “Na hora que um casal queria ter um filho, quem precisava mudar a vida profissional era a mulher. Nesse cenário, há uma grande dificuldade de criar condições para as mulheres se destacarem”, analisa a criativa da Naked.

Mudança

Pouco a pouco, e sem comunicados oficiais, a indústria publicitária vem tentando promover mudanças no cenário para abrir o mercado à criatividade feminina. Na semana passada, o Festival de Cannes anunciou uma nova categoria para premiar trabalhos que desafiam preconceitos de gênero e imagens estereotipadas de homens e mulheres na propaganda. Batizada como “Glass Lion: The Lion for Change”, a premiação terá como presidente de júri Cindy Gallop, fundadora da BBH New York e atualmente CEO da plataforma digital IfWeRanTheWorld/MakeLoveNotPorn.

A iniciativa segue a criação da “See It Be It”, criada pelo Festival na edição de 2014 para incentivar a carreira de mulheres criativas. “A predominância da voz feminina tem gerado a criação de várias mensagens de marketing. Inserir criatividade para capturar corações e mentes da maior base consumidora do mundo – a mulher – vai determinar o futuro dessa indústria”, explica Senta Slingerland, diretora de estratégias de marca do Festival de Cannes.

O Glass Lion reforça a percepção de Joanna Monteiro. “O cenário vem mudando. Hoje o mundo corporativo pede comportamentos mais femininos até mesmo para os homens, como ter sensibilidade, pensamento mais coletivo e delegar atividades sem medo.” A VP de criação da FCB acredita que, com a melhoria nas condições de desempenho da função, o aumento da participação de mulheres é um efeito natural. “O que manda na criação é o bom trabalho. Hoje as mulheres estão em condições iguais de se dedicar à profissão de um jeito interessante.”

DiferençaCelina Esteves, da Africa (esq.), Mariana Borga, da JWT (centro), e Mariangela Silvani, da Grey (dir.)

Um dos exemplos de que essa mudança, mesmo que lenta, está realmente em andamento é Mariana Borga, diretora de criação da J.Walter Thompson. Com 31 anos, a criativa chegou ao cargo depois de participar de campanhas historicamente pouco relacionadas ao universo feminino como a “República Popular do Corinthians”, criada em 2010 pela F/Nazca para a Nike. Assim como essa, Mariana já participou de outras ações de temas pouco associados ao estereótipo cor-de-rosa e de produtos de beleza ao qual classificam as mulheres justamente por estarem abertas a assuntos menos familiares com a vantagem de agregar características e valores femininos às criações. “Não sei precisar exatamente o que, mas certamente a mulher traz algo diferente para uma campanha. E isso é bom”, diz.

Para Sophie Schonburg, vice-presidente de criação da Pereira & O’Dell e vencedora de mais de 20 Leões de Cannes, entre outras premiações importantes, uma das principais características femininas que contribuem positivamente no processo criativo é o feeling de identificar mensagens desrespeitosas contra a mulher ou mesmo outros grupos da sociedade – aspecto cada vez mais importante com o fortalecimento das redes sociais. Além disso, uma capacidade mais inata de navegar por universos diferentes.

“Por ser vítima de preconceitos, a mulher tem mais cuidado ao falar sobre assuntos delicados e transita pelo universo masculino melhor do que o homem pelo feminino”, diz Sophie, que acredita em uma maior presença de mulheres na criação, mas deixa uma crítica sobre uma aptidão importante para qualquer criativo, independentemente do gênero: “Senso de humor. Em geral, a mulher ainda precisa aprender a rir mais de si mesma”.Sophie Schonburg, VP de criação da Pereira & O’Dell