Passados nove meses desde que 15 das maiores agências de publicidade do Brasil assinaram o pacto Conexão Negra com o Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT-SP), as metas e iniciativas estabelecidas para a inclusão racial nas empresas, em boa parte, estão sendo seguidas. Ainda que o cenário da pandemia da Covid-19 tenha apresentado desafios para a economia e a sociedade, trazendo reflexos nas contratações de forma mais ampla, as signatárias do pacto têm criado oportunidades de manter discussões sobre igualdade racial, além de políticas para fomentar talentos e novos líderes negros.
Essa é a análise da procuradora Valdirene Silva de Assis, que lidera a Coordenadoria Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho do MPT-SP. “A avaliação que fazemos para o segmento é positiva, o trabalho está na fase inicial, ainda mais com o momento de pandemia que traz questões operacionais para as empresas. Mas, no período pré-pandemia, as agências estavam de fato trazendo informações, comprometidas a mudanças nas políticas pensadas na inclusão e adesão de estratégias internas, como instituição ou reformulação de comitês de diversidade, grupos para trabalhar especificamente a dimensão da promoção da equidade racial e atividades permanentes com seus colaboradores debatendo essa questão”.
A procuradora destaca que até o começo do ano, os líderes das agências estavam comparecendo presencialmente para trocas de experiências, apresentando suas metas e projetos. Com o decreto da quarentena, em março, o Ministério suspendeu suas atividades presenciais. A expectativa é que ainda em julho seja feita uma reunião remota com as agências para o alinhamento do status das ações.
Dentre as metas estabelecidas pelo grupo, destaque para o alcance de 30% de profissionais negros em seus quadros, sendo, pelo menos, 20% na liderança. Embora esta realidade não tenha sido obtida por nenhuma agência até o momento, mesmo porque muitos processos seletivos foram congelados devido à pandemia, alguns avanços foram feitos, sobretudo, para desenvolver talentos. A WMcCann, por exemplo, criou um programa de mentoria para mulheres negras. Conduzido por Cintia Pessoa, gerente de RH da agência, o projeto contempla seis encontros online e terá duração de três meses. As interessadas devem enviar um vídeo para o processo seletivo até segunda-feira (6). Ao final do programa, cada mentorada terá a oportunidade de fazer um pitch para o Comitê Executivo da WMcCann, e expor um projeto de sua autoria. A agência mantém atualmente 20% do seu quadro formado por negros, 8% em cargos de liderança.
Na Ogilvy, um dos grandes focos é no SOMOS, o comitê de diversidade e inclusão. Um dos pilares de atuação do grupo é dedicado ao Movimento Negro, levando reflexões e provocações para reforçar o compromisso da agência com o pacto do MPT. Segundo Patrícia Fuzzo, chief talent Latam, a partir do SOMOS foi criado o grupo Black Ogilvy, que surgiu organicamente e se propõe a compartilhar questões pertinentes ao Movimento Negro.
Em meio aos recentes protestos contra o racismo e violência policial do movimento #BlackLivesMatter, por exemplo, o grupo produziu em parceria com o Content Studio da agência uma edição especial da revista digital Content News. O conteúdo foi compartilhado com toda a agência e também com o mercado, trazendo reflexões sobre o papel da publicidade na luta antirracista. “Contratar pessoas pretas é uma ação rápida e eficiente contra o racismo. Todo time de planejamento, criação, mídia, BI, atendimento, produção e conteúdo que não tenha pessoas negras contribue diretamente para o racismo”, destacou Samantha Almeida, então head de conteúdo da Ogilvy, em artigo na publicação. A agência fará ainda este ano um censo com uma consultoria externa para análise do número de profissionais negros em cada departamento.
A Artplan também dedicou conteúdo especial para a reflexão sobre os protestos. Como ação interna, a agência lançou um podcast com três colaboradoras negras, de diferentes níveis hierárquicos (diretoria, gerência e estágio), trazendo o tema Black Lives Matter. No programa foram trazidas histórias de vida, visão de mundo e medidas necessárias, sob o ponto de vista de quem tem o lugar de fala sobre o tema. Atualmente, a agência conta com 25% de profissionais negros e pardos em seu quadro. A ideia é que para o censo 2020 seja feito um recorte específico sobre negros para ter um retrato das medidas que precisam ser feitas com foco na diversidade.
Já a FCB Brasil dedicou o último dia 8 de junho para uma série global de conversas com seus funcionários negros. A ideia é servir como espaço de escuta para entender o que pode ser feito para combater o racismo internamente. Signatária do pacto com o MPT, a agência passou por mudanças em suas políticas de contratação. Ela, que atualmente mantém 14% de negros em seu quadro, se comprometeu a ter uma pessoa negra entre os três finalistas de cada vaga aberta. O investimento no desenvolvimento de carreira dos atuais profissionais negros da agência para a formação de novos líderes é outro foco de atuação.
Visibilidade
Sem o mesmo espaço que profissionais brancos no concorrido mercado de trabalho, os negros encontram barreiras até mesmo para apresentarem suas qualificações e expor seus trabalhos na internet. Como forma de evidenciar esses talentos, três criativas lançaram o movimento #BlackIn. Idealizada pelas redatoras Bruna Porto e Kady Ivassaki, e a diretora de arte Damaris Oliveira, a iniciativa propõe que líderes do mercado de propaganda emprestem seu perfil no LinkedIn para que talentos negros utilizem como vitrine, e tenham mais chances de contratação.
Entre os profissionais que já aderiram ao movimento estão nomes como Keka Morelle (CCO, Wunderman Thompson Brasil), Laura Florence (fundadora, More Grls; ECD, Havas Health & You) e André Passamani (coCEO, Mutato), entre outros. A Mutato, aliás, é uma das principais apoiadoras institucionais do projeto, como forma de dar suporte às suas colaboradoras que idealizaram a ação. “Entendemos que precisamos ser aliados, dar protagonismo às pessoas, aos projetos de pessoas negras, gente que tem mais autoridade que a gente”, destaca Passamani.
A agência desponta como uma das que melhor contemplam a diversidade no mercado, com 32% de negros em seu quadro, mas o executivo reforça que há muito a evoluir. “Não é uma matemática perfeita, não existe um número ideal, mas retratar a sociedade deveria ser a meta. Não se trata de buscar justiça social na empresa, mas sermos uma agência conectada com a realidade do Brasil”.
Valdirene, do MPT, concorda com a colocação de Passamani. A procuradora ressalta que uma vida digna passa pela necessidade de respeitar direitos fundamentais. E o trabalho é um desses direitos. “As agências têm uma oportunidade de intensificar o combate a descriminalização, realizando na sua entrega social, campanhas mais diversas lá na ponta. Esse é seu dever público de retratar de forma justa e adequada a realidade, compreendendo a real demografia do país em que se vive”.
Dentro dessa missão social citada pela procuradora, a Grey Brasil acaba de criar a campanha Vidas Negras Importam: Nós Queremos Respirar para a Universidade Zumbi dos Palmares e a Afro Bras. O plano de combate ao preconceito e à discriminação racial traz um manifesto que pede ações práticas do poder público para a proteção das vidas negras. Entre elas, a criação de 300 mil vagas de estágio, trainee e profissionais nas empresas para profissionais negros e ainda a criação de 500 mil bolsas de estudos para a qualificação de jovens negros em faculdades, cursos de pós-graduação e pesquisa científica, entre outras. O projeto contempla um filme protagonizado por artistas, personalidades do esporte, negócios, política e jurídico em favor da diversidade.
Novas políticas
Em 2017, a então J. Walter Thompson estabeleceu o programa 20/20, para alcançar 20% de negros em seu quadro até 2020. Operando há quase um ano como Wunderman Thompson após a fusão com a Wunderman, a nova agência herdou as diretrizes de cultura e diversidade, trabalhando para primeiro cumprir o objetivo da 20/20 e depois chegar à meta dos 30% estabelecidos com o MPT. “Continuamos perseguindo a nossa meta. E como disse a dra. Valdirene de Assis, o pacto não é apenas um documento, mas uma movimentação verdadeira para a inclusão. É um caminho longo, que precisa ser perseguido diariamente”, destaca Pedro Reiss, CEO da Wunderman Thompson.
No pacto estavam previstas iniciativas de capacitação e educação das lideranças e recrutadores, e, neste momento, esse é um dos focos da agência. Em parceria com a EmpregueAfro, consultoria em RH e diversidade étnico-racial, a empresa vem desenvolvendo ações mensais de acompanhamento de seus funcionários. Os encontros foram batizados de Café Camelia, e são voltados para os profissionais negros falarem sobre suas questões profissionais e pessoais.
Já a Y&R tem reforçado as questões referentes à desigualdade racial de forma mais constante desde o fim de 2018. Destaque para as metas internas de inclusão de profissionais negros por cada área em diversos níveis hierárquicos da agência. Para equilibrar diferenças de representatividade, foram pensados objetivos individualizados. Na criação, por exemplo, havia 19% de negros; no atendimento, 5%; no RTV, 33%. Ainda em julho será refeito o censo para acompanhar os avanços da presença dos profissionais negros na agência. No mesmo período do ano passado, a agência somava cerca de 16% no número total de profissionais negros.
Na Africa, a estratégia está na reformulação dos processos de contratação, desenvolvimento e capacitação. Segundo Camila Fidelis, gerente de gestão de pessoas, o pacto com o MPT é um marco que reflete o reconhecimento do mercado sobre a necessidade de mudança. “O momento pede a revisão de todos os processos internos, principalmente no que tange à gestão de pessoas”, destaca. Entre os principais focos de ação da agência está a aceleração de carreira de profissionais negros. A ideia é identificar os funcionários em ascensão e impulsioná-los com preparação e educação para a ocupação em cargos de liderança.
Direcionamento global
As iniciativas brasileiras vão ao encontro a um movimento mundial antirracista. As maiores holdings de publicidade do planeta se posicionaram e anunciaram medidas para suprimir o problema. O WPP, por exemplo, anunciou um conjunto de compromissos e ações para ajudar a combater a injustiça racial e apoiar o talento negro e das minorias. “O racismo não tem lugar na sociedade e no WPP”, disse Mark Read, CEO do grupo, em comunicado interno. A gigante vai direcionar US$ 30 milhões nos próximos três anos para financiar programas de inclusão no grupo e apoiar organizações externas. A holding também divulgou mudanças nas práticas de contratação, retenção, promoção e desenvolvimento de talentos. Além disso, todos os dados de diversidade serão divulgados pela rede.
John Wren, CEO do Omnicom, também se manifestou. “Não há lugar na sociedade para o ódio e o fanatismo. Esta não é uma questão política, é uma questão de humanidade básica”, disse. Já Arthur Sadoun, chairman e CEO do Publicis Groupe, endereçou aos seus colaboradores uma mensagem com os objetivos do grupo em promover um compromisso duradouro com a igualdade racial na corporação. “Nós precisamos de um novo começo. Precisamos imaginar, desenhar e executar formas para que o Publicis lute contra o racismo e promova mais oportunidades para a comunidade negra dentro de nossa companhia”. O grupo também publicou sete ações práticas para mudar a realidade atual. Entre elas, estão publicar os dados relativos à diversidade, cultivar os talentos negros da companhia e investir US$ 45 milhões ao longo de três em anos para combater o problema.
Michael Roth, chairman e CEO do Interpublic, em carta aos funcionários do grupo, disse que o racismo é um inimigo “ainda mais maligno do que um vírus que literalmente fechou o mundo”. Em termos de medidas concretas, Roth afirma que vai alinhar mais “firmemente” os programas de reconhecimento e incentivo para criar uma cultura mais justa e diversificada na organização.
No grupo Dentsu Aegis Network, a palavra de ordem é de zero tolerância ao racismo. “Não há exceções. Não defenderemos racismo, ódio ou discriminação de nenhuma forma”, disse Toshi Yamamoto, chairman & CEO do grupo. Segundo a empresa, apenas 1,8% de seus executivos são negros; 7,1% são asiáticos; 83,4% são brancos; 3,6% são hispânicos ou latinos e 4,1% são de duas ou mais raças. Jacki Kelley, CEO da Dentsu Aegis Network nas Américas, enviou uma carta aos funcionários detalhando como a empresa quer construir “um ambiente de trabalho verdadeiramente diversificado, ausente de discriminação, racismo ou preconceito”.