A indústria publicitária se fortaleceu em torno do conceito de que a ideia é o principal elemento para o sucesso de uma campanha. Esse conceito continua em plena vigência, mas a interatividade hoje proporcionada pelas redes sociais está cada vez mais evidenciando que somente a boa ideia já não basta. Ela precisa estar de mãos dadas fortemente com a verdade.
Duas campanhas bem recentes mostram que o conceito da verdade por trás da mensagem está se tornando algo tão essencial para a propaganda quanto a criatividade. A primeira é a ação “Jantar de Vingança”, criada pela Grey para o site Reclame Aqui, na qual executivos de empresas com altos índices de reclamação foram vítimas de uma “pegadinha” ao serem mal atendidos pelo garçom descomprometido de um restaurante.
A segunda foi lançada no último fim de semana pela Heineken Brasil com criação da Publicis. Intitulada “The Cliché”, a iniciativa desenvolveu uma história com três casais em torno da final da Champions League com começo, meio e um final surpreendente. O que ambas têm em comum é o uso de atores nos vídeos em um formato que não deixa isso totalmente claro para o público.
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Diante da polêmica gerada, o PROPMARK conversou com especialistas e profissionais do mercado para analisar os casos. Primeiramente, é importante saber que o trabalho de casting – seleção prévia dos personagens – é uma prática bem comum. De acordo com as fontes consultadas, é um serviço geralmente terceirizado que agiliza o processo entre a ideia e a execução. Além disso, é bastante usado por todos os anunciantes e agências principalmente porque elimina tempo e alguns riscos, como, por exemplo, o uso do direito de imagem dos personagens. Outro fator que torna o casting importante é a possibilidade de encontrar pessoas que representem o público da marca a tempo de cumprir os prazos.
Neste ponto, a Publicis, que criou a “The Cliché” para a Heineken, foi pega de surpresa com a revelação e a repercussão na internet de que a campanha contou com dois casais de atores e outro casal de não atores que também foi contratado para a ação. A agência explica que é uma prática absolutamente normal e que o ponto importante é que os personagens, mesmo conscientes de que se tratava de uma ação para a cerveja, não sabiam o que iria acontecer.
“A ação é espontânea e verdadeira. Apenas buscamos casais de namorados que gostam de futebol, sem distinção de profissões. Se sairmos filmando qualquer casal para só depois escolher e produzir, perderíamos muito tempo”, explica Kevin Zung, diretor executivo de criação da Publicis. “Nosso briefing para a empresa de casting não pedia em momento algum que fossem atores e, de qualquer maneira, as reações deles são espontâneas. Isso é o mais importante. Não havia roteiro para eles e muito menos orientação sobre como deveriam atuar”, complementa.
Para Zung, é triste que uma campanha com objetivo mais nobre acabe em meio à polêmica. “Lamentamos que o debate tenha se reduzido a isso. Gostaríamos de estar falando agora sobre o empoderamento feminino e o papel das marcas na construção de uma sociedade mais igualitária, ao invés de discutir se houve casting ou não em uma ação que propõe um tema muito maior”, afirma.
Na trave
Muito elogiada no primeiro momento da divulgação, assim como aconteceu com “Jantar da Vingança” do Reclame Aqui, a “The Cliché” da Heineken virou alvo de críticas por um grupo de jovens internautas que reconheceram o brilhantismo da ideia, mas se incomodaram com a presença de atores que acabaram protagonizando a campanha.
Segundo o professor e diretor-geral dos cursos de graduação da ESPM, Luis Fernando Garcia, a transparência total é uma realidade que as marcas precisam começar a se preocupar na hora de se comunicar com o público. “A propaganda usou atores a vida inteira e as pessoas achavam isso crível, aceitavam. No entanto, em determinado momento, passaram a não achar mais. A resposta das redes sociais está mostrando que isso não é mais plausível”, diz.
Para o acadêmico, que também trabalhou durante décadas no mercado publicitário como redator, a ideia da campanha da Heineken é muito boa, mas pecou no detalhe do formato. “Não é possível passar verdade com pessoas que não são de verdade. Fere a marca de uma maneira forte para um grupo que está muito sensível a essas questões atualmente. Pode ser uma história fictícia ou uma história real, o que não pode é ficar no meio termo. Pela maneira como o vídeo foi construído, isso não fica claro, o que diminui o poder da mensagem”, analisa Garcia.
“Sob a ótica do modelo de propaganda convencional, é uma excelente propaganda, mas a construção da narrativa busca outro modelo. A Heineken faz ótimas campanhas, mas dessa vez bateu na trave. A história pode ser boa, porém, se o espectador não acredita, não adianta nada”, conclui o professor.
Verdade e propaganda
Entusiasta da transformação do mercado publicitário e da introdução do conceito de verdade na propaganda, Joni Galvão, líder criativo e sócio da empresa de storytelling The Plot Company, analisa com cuidado a ação da Heineken que movimentou as redes sociais esta semana. “Não concordo com as acusações de que tenha sido uma mentira. As reações foram verdadeiras. O jogo realmente existiu entre os casais. Os homens realmente achavam que as namoradas estavam no spa. Fizeram algo que foi 90% de realidade. Mas, para ser 100%, não pode avisar nada. Teria que pegar as pessoas na rua mesmo”, diz, ressaltando que é possível fazer ações 100% espontâneas.
Uma campanha que optou por não usar casting e recebeu sete Leões de ouro no Festival de Cannes no ano passado foi “Gun With History”, da Grey New York para a ONG dos Estados Unidos Prevent Gun Violence. As pessoas entravam aleatoriamente em uma loja de armas e durante a venda o atendente contava os antecedentes de cada arma, inclusive com morte de crianças originadas pelo uso delas.
Para Galvão, que tem como sócio e mentor o roteirista de Hollywood Robert Mckee, que tem como premissa a verdade da mensagem seja ela contada por ficção ou história real, o público está forçando mudanças. “Fora qualquer exemplo específico, olhando para um aspecto mais amplo do mercado, a verdade da publicidade, aquela que as marcas se vendem sempre como as melhores do seu próprio jeito, não é mais a verdade dos consumidores. As pessoas estão dando novos significados para as campanhas”, diz.
Para o storyteller, os publicitários e as equipes de marketing das marcas têm um desafio grande para um futuro já próximo. “É um dilema para a publicidade porque é difícil fazer uma coisa 100% espontânea. Anunciantes e agências estão acostumados com casting, planejamento. É uma estratégia para diminuir a chance de dar errado. Mas acho que isso está acabando. Os mais jovens estão se engajando com um novo modelo. A publicidade tem o dever de ter menos maquiagem”, finaliza Galvão.