São vários os lugares onde os confinados pela pandemia se escondem do vírus. A grande maioria trancou-se em casa, muitas vezes vocacionada para curtos períodos de tempo. Ninguém em seu juízo perfeito montaria uma casa pensando ficar nela meses, com raras e curtas saídas para atender urgências como comprar comida. Os poucos proprietários de casa de campo ou de praia estão suportando sem grande desespero viver num espaço limitado, dividido com as mesmas pessoas sem poder sair para, metaforicamente, ir até o bar da esquina. Mesmo pais amorosos, depois de semanas a fio, sentem desejos de esganar os graciosos filhotes, cuja guarda era dividida com professores, amigos e esportes. Muita gente que eu conheço descobriu o quanto o conjunto formado por cônjuge e filhos pode tornar a vida insuportável. Note-se, por favor, minha preocupação em ser justo. Na frase anterior eu usei uma palavra unissex (cônjuge) ao me referir ao martírio de uma convivência forçada tanto para os homens quanto para as mulheres.

Some-se ao drama da falta de espaço a ausência quase total de pessoas encarregadas de um sem-número de tarefas que, muitas vezes, a gente nem sabia que existiam. Essas tarefas vão do tirar o pó dos móveis ao martírio de lavar pratos, jogar lixo na lixeira, limpar privadas e mais uma porção de providências que não tínhamos consciência de que existiam. Até mesmo cozinhar para o dia a dia se mostra um trabalho muito sofisticado para quem tem de atender às demandas do passadio de uma família. Um prato especial para o fim de semana é uma coisa. O arroz, feijão, carne ou peixe mais sobremesa sem se repetir exige uma sofisticação que pouca gente tem. Aproveitar os restinhos, criando outros pratos, já é o estado da arte. Só os privilegiados são dotados desta capacidade: transformar em iguaria o que seria, para os sem talento, nada mais do que lixo. No meu caso, o recolhimento me fez passar por uma experiência maravilhosa. Refugiei-me na década de 1950. Não, querida leitora, estimado leitor, se é que eu os tenho, a quarentena não me deixou mais louco do que sempre fui. Estou sóbrio e razoavelmente normal. Mas, tirando este computador e alguns eletrodomésticos, tudo o mais que me cerca é de outras eras. Acontece que na fazenda de parentes de minha nora há um atelier de pintura e uma espécie de refúgio que, desde o falecimento da matriarca, não era usado. Estava tudo exatamente como ela deixou. Um videotape U-Matic, máquina de escrever, TV à válvula, computador de disquete e ventilador Arno. E uma coleção de revistas, todas já desaparecidas, como Programa, do Jornal do Brasil, Planeta, Domingo (também do Jornal do Brasil), Manchete, Fatos e Fotos. Algumas registram a inauguração da TV Manchete, a programação da SSTV (SS de Silvio Santos) e até uma lista dos videocassetes mais retirados das locadoras. Entre as revistas, Programa apresenta a lista dos 10 melhores restaurantes do Rio, todos hoje abertos só na saudade, como Antiquárius, Le Saint Honoré, Quadrifoglio, Clube Gourmet e Le Bec Fin.

Outra revista abre espaço para a emocionante vitória de Airton Senna no Grande Prêmio da Bélgica. Numa Veja de 1986 encontro a notícia que na África do Sul, a TV estatal, por um erro qualquer, transmitiu um filme pornográfico no horário do principal noticioso. E, num país ainda às voltas com a segregação racial, as cenas de sexo explícito eram entre um negro e uma loura. Não fiquei sabendo como a história acabou. O único registro que encontrei foi outra notícia sobre o fato. Desta vez foi registrando que o principal jornal do país, Star, publicou na primeira página uma foto da cena polêmica. Na mesma edição o preso político mais famoso ganha a liberdade. Nelson Mandela. E, para coroar, nas Páginas Amarelas de uma velha Veja, leio uma entrevista com o novo ministro da Cultura, dr. Celso Furtado. Na abertura da matéria, a revista informa que o novo ministro, para assumir seu posto, teve de fechar o seu apartamento em Bruxelas, cidade onde ele – segundo as próprias palavras – se sentia em casa. Furtei-me, durante a leitura, de fazer comparações com os dias de hoje. Mas confesso que, numa casa onde ainda existem jornais e revistas comemorando a assinatura da Constituição, onde se encontram revistas 4 Rodas eufóricas com lançamentos de carros com designs brasileiros, tive muitas saudades daqueles tempos. Dos carros, dos cassetes, dos eletrodomésticos? Não. Até que não. Mas uma enorme saudade dos tempos que a gente achava que este era um país que estava no caminho para dar certo.

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Juntamente com as justas comemorações pelo aniversário deste jornal, o colunista aqui aproveita para festejar suas várias décadas de presença nestas páginas. Quero muito agradecer aos fiéis leitores que me acompanham. Saibam que tê-los é um dos grandes orgulhos de minha vida.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)